Projetos Secretos

Pavor.
O homem de mente simples estava apavorado. Seus companheiros estavam ao seu lado, ajoelhados como ele. Um pouco à frente um soldado tinha um telefone por satélite na altura do rosto, aguardando o momento oportuno para responder.
“São oito”, disse.
A recomendação veio quase instantaneamente:
“Leve-os daí, não deixe que vejam coisa alguma”, a voz andrógina se acentuava num tom mais sombrio com a interferência do sinal.
“Sim-senhor”
Isso bastava para justificar o pavor que o homem de mente simples sentia. Mas outros elementos não podiam passar batidos.
Ele e seus companheiros trabalhavam na condição de escravos para uma quadrilha que abria caminho na mata virgem para que outros viessem depois e construíssem pistas para pousos clandestinos. Eram colaboradores das rotas do narcotráfico.
Como um modo de garantir uma refeição e um lugar para dormir, eles aproveitavam as valiosas madeiras das árvores derrubadas e entregavam ao “bom coronel”.
Não sabiam ler nem escrever. Foram privados de uma educação digna. Alguns se gabavam porque sabiam ler as pesagens. Vestiam-se com farrapos que duravam por anos. Assolados por doenças, costumavam morrer cedo, em angústia. Mas rapidamente eram substituídos por outros mais novos. No geral, eram homens de mentes simples e uma vida nada digna.
No entanto, apesar de não serem capazes de realizar cálculos matemáticos básicos, eles sabiam que os soldados que os interceptaram na área recém desmatada era um exagero para aquele tipo de operação.
Além dos soldados, que estavam com um armamento pesado, havia dezenas de helicópteros que sobrevoavam onde se encontravam, desaparecendo de vista, seguindo para o que eles consideravam como o “território da morte”. Pois não só se tratava de uma mata mais densa e fechada como havia crateras e fendas que engoliriam sem remorso quem quer que fosse para as trevas.
Evitavam explorar aquela área em diante. Era o mínimo de raciocínio lógico que podiam ter, mas que se originou pelo medo.
O homem de mente simples nunca viu um helicóptero além da televisão.
Abriam a mata e eram alertados a não se aproximarem de uma pista de pouso quando a mesma fosse usada por uma quadrilha, a desobediência seria retribuída com a morte.
Espiavam intimados pela fustigante curiosidade os aviões pousarem desajeitadamente nas pistas abertas por eles.
Vários soldados estavam seguindo o caminho dos helicópteros. Adentravam o território da morte sem receio algum. Ou será que o homem de mente simples não conseguiu captar o medo que sentiam por esconderem seus rostos com máscaras pretas?
Ajoelhados e com as mãos atadas por um “enforca-gato”, não era inteligente tentar fugir deles.
Um estrondo ruidoso. Um trovão monumental fez o pavor se acentuar enquanto a espinha gelava.
O homem de mente simples não fazia ideia do que acontecia, mas aos poucos, uma certeza foi florescendo. Gradualmente ele pôde chegar à conclusão de que os soldados não estavam ali por causa deles. Em paralelo, na mesma proporção do pavor, uma esperança ilógica foi crescendo.
O soldado com o telefone por satélite reapareceu a frente deles.
“Senhor! Detonaram a bomba”, disse para o telefone.  A resposta foi inaudível.
Poucos segundos após a explosão um zumbido exótico intensificado por um chiado agudo fez todos sentirem calafrios.
Todos olharam para a mata que avançavam. Já não havia mais o tráfego contínuo de helicópteros.
No entanto, uma nuvem no céu limpo daquela tarde surgiu como uma mancha pincelada por um pintor gigante. Escura como carvão, parecia ter vida própria, com a textura felpuda e seus movimentos expansionistas como um animal que se esforçava a se rastejar.
“Contato visual!”, gritou para o telefone, e na voz o pavor que qualquer homem poderia se dar o luxo de ter.
A voz andrógina ordenou algo, mas novamente não conseguiriam ouvir.
“Sim-senhor!”
Outros soldados trouxeram capuzes e um a um cobriram os rostos dos homens ajoelhados.  O homem de mente simples mal conseguia imaginar o que estava ocorrendo. Seu pavor e esperança se mesclaram criando uma sensação inédita.
O soldado que tinha o telefone por satélite encarou os outros soldados, como se todos pensassem a mesma coisa.
“Me perdoem”, disse o soldado e encostou o cano de sua arma na nuca do homem de mente simples. “Mas vocês são testemunhas de um projeto secreto”
Sentença proferida. Nos primeiros segundos não entendeu o que ele quis dizer, mas aos poucos, um julgamento das palavras daquele que o mataria em pouco tempo ganhou forma, tal como a imagem da nuvem negra no céu acima deles, figura essa que ainda estava gravada em sua cabeça.
“E não são todos os pensamentos fragmentos de projetos secretos?”, indagou, incrédulo quanto a eloquência e autoconfiança que escapou por sua boca abafada pelo capuz.
O soldado não compreendeu. Apertou o gatilho e desfez a esperança e pavor que percorriam a carne do homem de mente simples, oferecendo-o para a escuridão.
Seus companheiros fizeram o mesmo, todos os homens ajoelhados tombaram no chão sem vida.
Sua missão continuava, aqueles homens foram um inconveniente. A nuvem negra sumiu, ele não reparou para onde se foi. Mas as horas seguintes foram cruciais para que sua consciência fosse douta do que a sua vítima quis dizer.
Todos os helicópteros foram inábeis, nenhum deles cortava o céu acima dos soldados ou dava o ar de sua presença acima da mata.
Em sua maioria, os homens que avançaram sumiram, provavelmente pelas fendas e buracos de erosões suspeitas para a tipografia daquele ambiente.
Dos que retornaram metade estavam em estado catatônico.
Um amigo de longa data do soldado que mantinha o telefone na cintura e vislumbrava toda a situação da missão com espanto surgiu de folhagens. Ele fitou seu companheiro e um sorriso indevido para a ocasião aflorou em seu rosto marcado por arranhões de galhos e gravetos. Sacou a arma do coldre e atirou mirando sua têmpora.
A missão já se declarava malsucedida. Indagou para o supervisor de operações pelo telefone qual seria o próximo passo. Pois não teria como capturar a…, o…, o quê mesmo?
“Seu nível não garante permissão de saber o que é o alvo, soldado. Entenda, esse projeto é muito secreto”
Um calafrio percorreu sua carne quando ouviu um zumbido exótico.
Mas por que estava se entregando ao pavor? Tinha ciência dos riscos, não resguardava remorso em remover os empecilhos da missão.
Olhou para o alto e a nuvem estava no céu novamente.
Sabia que não tinha pavor daquilo. Então, concluiu que fosse qual fosse a razão de seus temores, tudo, seus pensamentos ou emoções, não passavam de fragmentos de um projeto secreto de algo muito maior.

Dias Sensíveis

Entre centenas de existências que se expandem universo afora, além de outras que se encaixam entre os paralelos, uma em particular se desfigurava em sua rotina.
Os seres dominantes carregavam o duro fardo e vazio da existência.
Se cotavam muitas poesias terríveis, trágicas, belas e contraditórias acerca da fragilidade desses seres dominantes.
Em poucos milênios desenvolveram seus corpos moles, voláteis, que se expandiam a um nível tal qual podiam atravessar uns aos outros sem pudor. Um salto considerável na evolução e então acordaram mais rígidos, com corpos que atendiam às regras da gravidade, dos fatores climáticos, da durabilidade material.
Mas o padrão evolutivo não se tornou escalar. Estagnaram na forma rígida e no transcorrer de milhões de anos viram apenas as civilizações desabrocharem e fenecerem.
A fragilidade foi notada logo após a última fase evolutiva.
Uma morte súbita, sem aviso, colhia tais seres em um ritmo incalculável.
Um trabalhador retornando de um dia árduo, carregando sua valise com contas e apólices… cai sem vida no meio da calçada. De seu corpo rígido um orifício surge e uma fumaça fina escapa como uma alma livre de sua prisão material. Os demais transeuntes olham, se chocam por poucos segundos, até perceberem que é a morte mais comum do mundo. O corpo é retirado e levado para as devidas formalidades funerárias.
Tal morte nunca foi compreendida. Acontece a qualquer indivíduo.
Grande, pequeno, belo, feio, bom, mau, alegre, triste, prospero, miserável, jovem ou velho.
Uma dançarina num espetáculo, ploft. Cai sem vida.
Um bebê recém-nascido, trincando a casca materna, sffff, a fumaça é cuspida quase sem folego.
Um atleta num campeonato mundial, a bater o recorde, brump. A violência da queda na pista não foi a determinante, os espectadores já imaginavam o que o fez perder.
Tais seres não eram imortais, morriam em choques de aeromóveis, em tragédias geológicas, de velhice, de pestes variadas.
Mas a morte súbita não era compreendida, estudos tentavam apontar algum padrão, encontrar algum ativador, algum motivo que pudesse ser contornado.
Nada, milênios e milênios transcorreram e nem mesmo um panorama estatístico pôde ser apontado.
Dormindo no quarto confortável, o marido nem se contorce, a fumaça é expelida umedecendo parcialmente a fronha.
O médico a consultar a criança com os membros raspados por alguma alergia, um gemido fraco, que se perde em meio à queda lenta.
A caixa do banco não completa a digitação do protocolo.
Leves suspiros das testemunhas, mas a vida continua.
Próximo a uma praia, um casal de jovens sentados num banco observavam o desfile de seres aquáticos que insistiam em quebrar a monotonia do mar cinéreo.
“E se fossemos dez vezes mais resistentes?”, indagou a menina com a cabeça sobre o colo do namorado.
“Acha que surtiria alguma diferença em nossa consciência?”, indagou o namorado.
“Cem vezes?”
“Não creio”
“Então mil”
“Duvido muito”
“Fala como se nunca se importasse, não sentisse a nossa vida frágil”
“Não hoje. Talvez eu não esteja no meu dia”
“Mas mesmo quando forço a questão tem uma resposta rápida, indiferente, fria”
“Levo em consideração a questão da relatividade, simples assim”
“Não importa a nossa resistência, sempre estaríamos sujeitos à uma fragilidade?”
“Acho que para ter noção dessa resistência, força ou seja lá o que você chamaria, teríamos que ter em paralelo a consciência da perda. Não é essa sensação que torna tudo mais empolgante de ser vivido?”
“Sim, mas seria bom se tivéssemos ao menos um certo controle”
“Nascemos sem pedir e morremos sem querer, é verdade. Mas esse meio já é o suficiente para nos esgotarmos de momentos”
Entre afagos e carícias, entraram em consenso, assim como milhões de seus semelhantes, que todos os dias adotavam a conclusão mais digna. E criavam poesias, romances, tragédias, comédias, reflexões, citações…
Não antes, é claro, de se sensibilizarem com o fato.

O Caracol mais Rápido do Mundo

Por causalidade ou desconhecida intenção, o caracol B-12 alcançou a extremidade marcada por uma faixa vermelha denominada como ponto B sendo o mais rápido dentre os seus antecessores.
Como se ausente de atividade alternativa, sem o mínimo resquício de confrontar as suas vontades, ficou parado sobre a haste de ferro polido, cuja forma cilíndrica distorcia seu reflexo de modo cômico.
Retirado dali, fora colocado na caixa de vidro junto com seus parceiros de vivência em cativeiro.
“E ae chapas, de volta na área”, disse em seu tom juvenil.
“Olhe só, ele já voltou”, disse B-07.
“Então é ele”, ponderou quase que para si mesmo B-04.
“Verdade, considerando a meticulosidade dos de Branco, é ele”, concordou B-03.
“O que sou? Que meticulosidade dos de Branco? Do que estão a falar seus cabeça de molusco”
“Você não presta atenção nas coisas, B-12?  Não ouviu a conversa de ontem?”
B-12 desconsiderou o fato de que um caracol não possuía a audição como sentido básico, mas preferiu não entrar no mérito da discussão, até porque havia inexplicáveis razões que permitiam a comunicação necessária entre os de sua espécie, e palavras como “ouvir” era uma liberdade de expressão aceita por aqueles que viviam naquele laboratório.
“A meticulosidade dos de Branco é peça fundamental de nossas especulações. Os de Branco não tardariam em retirá-lo da Caixa Olímpica e depositá-lo aqui novamente. O que nos leva a concluir que você é de fato o mais rápido de todos”
“Mais rápido? Mais rápido de todos? Mais rápido em relação ao quê afinal?”
“Em deslocamento, ora, ele nem sabia qual era a competição”, queixou-se B-05.
“Competição? Era uma competição?”
“Santa lerdeza B-12! Acorde! Você não desconfiou da sua existência aqui nesse laboratório?”, indagou nervoso B-01, o mais velho do grupo.
“Sim, mas o que as questões filosóficas têm a ver com a competição de velocidade?”
“Com essa mente em marcha lenta e ele é o mais rápido de todos, como pode isso?”, B-09 trazia em sua voz um misto de uma risada abafada e fracasso emocional. “Você também não questionou os métodos utilizados? Não estranhou que fugiam ao padrão?”
“Um pouco, mas não me incomodei com isso, sabe, sempre soube que nosso propósito era sermos analisados em experimentos variados, mas prefiro pelas mãos dos de Branco, em suas meticulosidades, como vocês chamam, do que ser experimento de um garotinho rechonchudo a brincar no jardim da casa da avó enquanto joga sal sobre nosso frágil corpo. Até a palavra sal aqui é menos chocante, nem parece que Cloreto de Sódio pode nos matar”
“E ainda sou obrigado a ouvir isso, B-12, você não merecia isso”, B-09 afundou para dentro de sua concha.
“Hum, estou vendo aqui”, disse B-01 retesando suas antenas maiores ao ponto de deixar seus olhos grudados no vidro da caixa. “Vejo no tablet do pupilo de Branco, há uma tabela com os dados. O título é: O caracol mais rápido do mundo. Você B-12 é 16.2 segundos mais rápido do que B-23, portanto, um vencedor de impressionante marca ”
Por mais que tenha se esforçado a ocultar a satisfação própria, B-12 notou que seus companheiros já aguardavam certa animosidade de sua parte. Sendo assim, decidiu não encenar uma falsa modéstia e disparou, em sua velocidade observada como a mais rápida do mundo dentre os da sua espécie até o vidro da caixa. B-01 afastou-se e ficou a observar B-12 quase se esborrachar na superfície de aspecto quase onírico, de material invisível quando visto distante, mas que refratava todas as luzes quando se colava os olhos nela.
“Ei!”, gritou B-12.
Os de Branco estavam a brindar o resultado, ou pelo menos, era o que os caracóis julgavam estar fazendo. Com a preocupação e zelo por não sujarem seus jalecos impecavelmente brancos de mostarda escura quase não notaram o vencedor avulso ao grupo e grudado no vidro do cubículo de descanso.
Quando o notaram aproximaram-se para observá-lo.
“Ei! Vocês… de Branco”, B-12 gritava, desesperado em ser notado. “Olha, aqui…, err, eu não sabia que era uma competição, no duro. Sério mesmo, não fazia a mínima ideia”, decidiu evitar o preambular comum que deveria ser um agradecimento ou início de discurso da vitória. Tomado por uma sensação nunca antes experimentada, sua voz escapava pelo orifício bocal ao lado do genital quase que por impulso próprio, exalando uma ansiedade que transparecia seu orgulho, prepotência e arrogância.
“Não sabia que estava competindo com os outros, sério mesmo”, continuou, agora fitando os olhos dos cientistas que observavam enquanto mordiscavam seus sanduíches de atum. “Se eu soubesse, rá, meus chapas, eu teria sido mais rápido, talvez 0.7 segundos ou quem sabe até 0.9. Sério mesmo, sou mais rápido do que isso, vocês não têm ideia. Aquilo foi moleza para mim. Eu sou muito mais do que testemunharam, o meu potencial está além de todas as regras da natureza, esses meus comparsas podem não acreditar, mas acho que vocês compreendem, não é?”
B-12 continuou a discorrer sobre a sua habilidade sem se preocupar com o tom grotesco que suas palavras poderiam adquirir, afinal, ele podia se engrandecer, não? Ele podia reconhecer que era o melhor, não?
O que ele via era o semblante curioso dos cientistas a observá-lo tornou-se uma imagem congelada no tempo, não cessou suas palavras entremeando-se de sinônimos e inflando seu ego com metáforas e eufemismos.
Mas, os cientistas não se importavam com o potencial máximo não alcançado do caracol, muito menos do que ele estava a gritar naquele momento.
O que complicava era que a B-12 não importava se eles estavam de fato interessados no que dizia, pois já havia pré-concebido essa ideia.
O que sobrava em uma análise mais externa era a conclusão de como a natureza era generosa. Pois, o caracol tinha a liberdade de expressão, mas a quem importava o que dizia? Os cientistas não se importavam com a sua necessidade de de se expressar, tão menos seus companheiros de cativeiro. Porém, a generosidade da natureza não era de impedir a comunicação entre as duas raças num manto de sufocamento da liberdade de expressão, mas sim, e também, na do direito do caracol poder se vangloriar em seu pedestal da vitória por um título merecido e não sair vaiado por um público exigente ou se tornar um novo motivo de chacota.

Caracol mais Rápido do Mundo

Caracol mais Rápido do Mundo

Monstro Invisível

Eu, Jennipher Diogenes Assumpção relato as sessões com o cliente mais inusitado e insólito de minha carreira, que apesar de curta, até o presente momento nunca tive contato semelhante e tenho fortes convicções de que em um futuro distante tal fato não ocorrerá novamente.
O início se faz presente numa terça-feira comum, com muita chuva pela manhã. Aquele congestionamento irritante na avenida do meu consultório e clientes atrasados quanto à hora marcada.
Minha atendente disse que alguém apareceria às três da tarde, mas que o mesmo não quis se identificar por motivos não declarados.
No horário marcado, a sala de espera parecia vazia. E enquanto eu procurava um documento em meu arquivo e tinha em mãos o celular para ligar para o advogado responsável pelo processo de divórcio eis que a porta se abre, mas sem a presença de alguém sequer. Poderia ser um tipo de vento forte, mas notei de que a mesma não estava encostada e que estranhamente a maçaneta se movimentou como se estivesse forçada por um peso fantasmagórico.
Deixei o celular cair quando vi que a poltrona à frente que deveria ser ocupada pelo cliente sofreu um recolhimento.
“Oi”, foi a voz que escutei à minha frente.
“Oii!?”
E então ele se apresentou, o cliente das três da tarde que não dissera seu nome.
“Estou aqui após muito tempo pensar e quando me enchi de coragem não tive dúvidas em marcar com você”, disse a voz que soava gutural.
“Pirei!”, foi o que pensei na hora.
“Não, você não pirou. Eu sou assim mesmo. Sou invisível”
Fiquei calada por uns dois minutos, petrificada, pasma, chocada como se tivesse sido abatida por uma esquizofrenia momentânea. Seria a pressão? A preocupação com o divórcio? Algum transtorno hormonal? Alguma crise específica de psicólogos. Minha cabeça viajava a mil.
“Imaginei que o começo não seria fácil, então não me irritarei caso hoje fiquemos apenas nas meras apresentações cordiais”
Permaneci na mesma posição por uns cinco minutos, incapaz de gritar pela minha atendente, para que a presença da mesma expulsasse o devaneio.
“Pois bem, vamos começar ou não?”
“Começar?”
“Sim, eu vim aqui como seu cliente. Eu marquei para esse horário. Vamos começar ou não?”
“Você é algum espírito?”, me limitei a essa pergunta quando minha mente já tinha forçado todas as respostas lógicas.
“Não, sou um ser vivo. Eu sou um monstro. Um monstro invisível”
“Você é o diabo?”, nesse momento todo o ceticismo caiu por terra.
“Não. Não pertenço às espécies denominadas como seres das trevas. Mas sou um monstro de qualquer forma, se me enquadrar na classe de demônios não vou me importar porque esse preconceito é universal”
Com a mão trêmula abri a gaveta de minha mesa e procurei sem tirar os olhos da poltrona uma das ampolas com fragrâncias virtuosas. A que peguei tinha no rótulo a inscrição “Lealdade” e quando li desisti de inalar o odor purificador. Percebi que toda aquela loucura tinha sim a ver com o divórcio. Lágrimas escorreram e eu desatei a chorar.
“Droga. Parece que você tá pior do que eu”, lamentou a voz. “Façamos o seguinte. Voltarei aqui na próxima semana, está bem?”
E assim enquanto eu chorava a poltrona restituiu os amassados, a porta abriu-se e fechou-se magicamente e me senti num ambiente solitário.
Depois de alguns minutos, quando enxuguei as lágrimas fui verificar com Ana sobre quem estava na sala de espera.
Vazia.
Ana estava a conversar com o namorado no comunicador instantâneo com fones de ouvido ouvindo alguma música da Lady Gaga. Percebendo a minha figura a espiar a sala da porta removeu os fones e me dirigiu a palavra:
“Não veio o senhor sem nome, né?”
Eu a olhei com os olhos limpos.
“A porta está aberta”, indiquei a entrada do consultório.
“Sim, você quer que eu feche? Eu abri depois que parou de chuviscar”
“Você não viu ninguém entrar aqui?”
“Não. Por quê?”
“Nada. Pensei ter ouvido alguém entrar”
“Ninguém entrou, senão eu teria visto. A não ser que fosse invisível”
A jovem Ana era uma menina que trabalhava bem, tinha um senso de humor agradável, mantinha um espirito juvenil como se não houvesse pressões da maturidade do mundo externo.
Uma semana depois Ana me informou sobre o paciente que não compareceu na terça passada.
“O senhor-sem-nome marcou para hoje. Fiquei de retornar para confirmar, às cinco é um bom horário?”
Engoli seco. Fiquei tensa novamente. Seria apenas uma coincidência? Ou seria contemplada com  a visita do ser invisível novamente?
“Tudo bem, pode ser às cinco”
E assim, no horário marcado a sala de espera se encontrava vazia novamente. Deixei a porta aberta, esperando enxergar a silhueta do meu cliente nada pontual.
Sete minutos e cinquenta segundos após o horário marcado a porta fechou-se sozinha. Meu coração disparou novamente.
Acomodou-se na poltrona e me cumprimentou.
“Boa tarde”, respondi categórica.
“Espero que hoje possamos iniciar as sessões de fato”
“Quem é você?”
“Essa é a pergunta que venho tentando responder a mim mesmo, sem sucesso até hoje. Por isso estou aqui. Preciso de sua ajuda”
“Minha ajuda?”
“Sim”
“Você não sabe quem você é?”
“Eu tenho uma ideia, mas foi imposta. Não sei de fato quem sou eu. Acredito que me entenda”
“Eu…, eu…”
“Passado o susto acho que hoje já podemos nos conhecer. Que tal fazer um breve resumo de seu currículo”
“Espere! Eu estou falando com um monstro que não existe. É isso mesmo?”
“Ah mas que droga. Você não vai chorar de novo, vai? Eu estou aqui justamente para encontrar respostas sobre minha existência e você diz que não existo somente porque não pode me ver. Isso é ético?”
“Me de-desculpe”, e então, não sei como se sucedeu, mas passei a aceitar a estranha ideia que tinha um monstro invisível como cliente.
“Está perdoada. Agora por favor, faça um breve resumo sobre a sua formação, apenas para creditarmos as cordialidades e eu inicio as explicações atentando-se à maiores detalhes”
Discorri sobre a minha formação acadêmica e sobre a experiência que havia acumulado após a conclusão do curso. Disse tudo em um tom baixo, temendo que Ana ouvisse e imaginasse que eu conversava sozinha.
O monstro invisível se apresentou falando o mínimo possível:
“Como disse antes, eu sou um monstro. Invisível, mas ainda sim real. Sofro com uma questão e gostaria que me ajudasse a encontrar a resposta”
“Entendi”, levantei-me da cadeira e andei atrás da mesa como se aquilo fosse me dar mais ar. “Você disse que não sabe quem é”
“Exato”
“Sofre de algum tipo de amnésia?”
“Não, me recordo de tudo desde que nasci”
“Certo. Então pode reformular a pergunta?”
“Não sei quem sou. Vocês humanos já pararam em algum momento da vida questionando tal coisa, não?”
“Sim”
“Então. Acredito que tenham criado correntes filosóficas que orientem a reposta”
Sentei na quina da mesa, ainda amedrontada e receosa para me aproximar. Naquele instante engoli a bizarrice vivida e o imaginei como um cliente comum.
“Qual o seu nome?”, indaguei.
“Não tenho um nome como vocês humanos. Mas me chamam de Monstro Invisível”
“Entendi senhor Monstro Invisível. Por que você acha que não sabe quem é?”
“Porque eu não sei”
“Você sempre não soube, ou passou a se questionar a partir de um período ou fase?”
“É…, na verdade, venho pensando nisso somente nos últimos dez anos”
“Qual a sua idade?”
“Comparados aos seus devo ter uns duzentos. Mas vim do Buraco Escuro há cinco mil anos”
“Buraco Escuro? Isso é algum…”
“É a dimensão onde nascemos. O monstros da minha raça”
“Como é esse lugar?”
“Escuro, bem escuro”
“Continue”
“É só escuro, não há mais nada. Nada cresce lá, não há chão, céu, gases. É apenas escuro”
“E você veio de lá pra cá…”
“Quando chega a hora. Do nada, apareci nessas terras”
Nesse ponto eu sentei novamente e comecei a digitar ligeira, tomando notas sobre o que ele relatava.
“Por favor, continue. Conte-me tudo que seja relevante para a sua questão”
“Antigamente eu me alimentava de pessoas…”
Congelei com a afirmação, um frio me subiu pelas pernas adentrando a minha saia e se concentrou em minha barriga. Meus dedos sobre as teclas ficaram paralisados aguardando alguma ordem.
“…mas faz tempo que deixei esse hábito quando descobri que frutas são mais deliciosas. Mas o último homem que peguei…, ah, deixe-me esclarecer, eu só me alimentava de homens maus, comprovados aos meus olhos. O último deles começou a gritar como uma menininha chorona quando o suspendi no alto enquanto abria a minha boca para engoli-lo. Gritava ‘O que é isso? O que é isso?’ repetidas vezes e quando se calou pelo ácido do meu estômago fiquei pensativo quanto ao assunto”O fato dele ter dito que o seu hábito alimentar era motivado por certa justiça própria me fez relevar a ideia psicótica. Ele já havia se declarado um monstro. Era um monstro que comia frutas, algo que devia ser contra a sua natureza ou uma peculiaridade incomum. Mas eu continuei a ouvi-lo.
“Sabe, ser invisível não é fácil. Aqueles ‘O que é isso?’ daquele assassino desgraçado me perturbaram por vários anos. Pois veja, ele não podia me ver. Morreu por algo invisível. Mas o que teria pensado? Foi o que tentava imaginar e para a minha desgraça não consigo formar uma ideia de mim mesmo.
Entendi que o problema dele era a famosa crise de identidade. Para um paciente comum, seria algo normal de se resolver. Mas como eu faria com um não-humano e ainda por cima invisível? Olhei para a prateleira. O que Freud diria sobre isso? O que Sartre pensaria sobre tal diálogo?
“Mas você me disse que existe fisicamente, já que não é um espírito”
“Sim, eu existo fisicamente”
“Pois então, você não possui cor, mas tem forma. Podemos começar por aí, não é verdade?”, disse isso com um tom animador e eu estava de fato animada.
“Não, não é verdade”
Meu rosto fechou uma expressão de dúvida, fiquei esperando que ele complementasse sua explicação.
“Eu não tenho uma forma única, posso me modificar a necessidades”
“Perdão, não entendi”
“Deixe-me explicar melhor. Eu poderia muito bem jogar um lençol sobre mim e ter a figura de um fantasma, mas o que ocorre é que tudo entra em contato com meu corpo torna-se também invisível, bom, nem todas. Ás vezes, objetos como essa poltrona permanecem visíveis, mas a maioria desaparece ao menor toque”
“Mas ainda assim você possui sensibilidade, não?”
“Sim. Mas no que isso me ajuda?”
“Você sente e sabe se tem duas pernas, dois braços, dois olhos, não?”
“Como disse, eu posso me adaptar a necessidades. Como agora por exemplo, eu encolhi dois metros para caber nessa sala. Tenho duas pernas, quatro mãos, olhos?… eu sinto os músculos e nervos de quatro, mas para  obter a visão de trezentos e sessenta graus poderia criar mais dez se necessário. Assim como meus braços podem se multiplicar em vinte ou trinta e tomarem formas distintas como tentáculos, pinças e ferrões”
Minha surpresa entrou em outro nível. Passei a buscar as respostas mais óbvias, porém, nada me veio à mente. Imaginei professores antigos ministrando aulas monótonas e vagas. Lembrei de inúmeros exercícios mentais que poderiam me ajudar naquela ocasião.
“Acho que você compreendeu o meu problema”
“Sim”
Fiquei digitando, mas em um ritmo mais lento de forma que ganhasse tempo. A percepção externa ajuda em muito para a formulação do eu interior. E no íntimo daquele ser não havia essa base para sustentar alguma ideia. Ele mencionou que a ideia de que tinha havia sido imposta, certamente pelos termos e denominações que os devorados devam ter gritado em desespero.
“Pois bem senhor…, pela sua voz você é um macho, certo?”
“Não temos distinção entre sexo. Nós não nos reproduzimos como vocês. O Buraco Escuro é o grande progenitor”
“Ok, vou chamá-lo de você para evitar variações e possíveis confusões”
“Tudo bem. Você conseguiu pensar em algo? Algo para começar?”
“Por enquanto não. Temos que prolongar as sessões. Eu gostei de conversar com você, adoraria que voltasse”, não consegui evitar a frase clichê.
“Tudo bem, pelo menos você não chorou hoje”
Ele retornou duas semanas depois.
“Bom dia, como se sente?”
“Com a mesma dúvida a latejar em minha cabeça”
“Como passou sua semana?”
“Fazendo as mesmas coisas de sempre. Visitando feiras, roubando frutas sem grandes dificuldades”
“O que você sente quando pensa sobre a sua identidade?”
“Um vazio”
Transcrevia tudo com a maior agilidade possível e sendo fiel a cada palavra dita.
“Você tem contato com os da sua espécie?”
“Não”
“Já teve?”
“Não”
“Como sabe que não é o único?”
“Não sou. É uma noção básica que temos. Sabemos que estamos espalhados pelo mundo. Cada um deixa o Buraco Negro sozinho, sem despedidas”
Tudo que pensava falia nos testes primários, todas as hipóteses que elaborava nos finais de semana não se encaixavam na situação do monstro.
Após a décima quarta consulta propus o seguinte:
“Por que você não pensa em uma cor que não existe?”
“Eu não entendi, isso é outro exercício?”
“Sim, tente. Você não conseguirá saber que tipo de cor seria essa, mas teria como base que pelo menos sabe que ela não é alguma das cores existentes”
“O que isso quer dizer?”
“Um modelo a seguir quando não sabemos quem somos é termos como base quem não somos”
“Você acha que isso funcionará?”, o monstro estava incrédulo quanto ao proposto.
“Acredito que sim. A definição do seu eu poderá emanar a partir daí”
Considerei ter sido a pior ideia. Poderia funcionar para um adolescente de classe média, mas não para ele. Nas sessões seguintes ele detinha inúmeras definições do que não era, e o montante acumulava cada vez mais, o que o incomodou muito.
“O vazio aumentou. Sei tudo o que não sou, mas não tenho a mínima ideia do que poderia ser”
Lamentei o erro, voltei a pesquisar mais, procurei estudos de grandes físicos, de filósofos que vagavam na antiga Grécia. Não conseguia absorver tudo no tempo certo. Tinha que dedicar meu tempo em casa como uma mãe. Não podia ignorar o meu filho de quatro anos.
“Mamãe sabe tudo”, disse ele outro dia se aproximando com os olhinhos brilhando. Costumava dizer isso para que eu o ajudasse com alguma coisa, fosse para ajudar a calçar a sandália ou encontrar um brinquedo. Aprendeu tal frase com a minha irmã há poucas semanas quando ela o alertou: “Ouça sempre sua mamãe. A mamãe sabe tudo”
E diante disso pensei no que poderia ser a solução. Na próxima sessão ofereci o que poderia ser a minha última solução:
“Bom dia, tudo bem?”
“Bom dia. Não muito. Já sei que não sou o Bicho-papão, o Pé Grande, o ET de Varginha, a Cuca, o Tinhoso, o Lobisomem, o Godzilla…”
Tive de interrompê-lo, estava ditando a infinidade propositalmente, queria me provocar.
“Hoje quero que você me relembre sobre a sua origem”
“O Buraco Negro?”
“Exato”
“O que deseja saber?”
“Lembro que disse sobre as suas noções básicas”
“Sim”
“Muitas respostas você sabe de modo natural, esse saber provém do Buraco Negro?”
“Sim”
“Você já perguntou algo ao Buraco Negro?”
“Não, por que deveria?”
“Nunca lhe ocorreu que pode ter a resposta de que tanto precisa?”
Ele permaneceu em silêncio por algum tempo.
“Tudo o que precisava saber o Buraco Negro já me deixou ciente”
“Mas restou uma pergunta, você nunca a conjurou?”
“Nunca”
“E então, não quer tentar?”
“Acha que vai dar certo?”
“O Buraco Negro seria incapaz de responder algo a você?”
“Isso seria impossível”
“Então tente. Inicie a introspecção clamando o grande progenitor”
“Por que você acha que isso vai dar certo? E se tornar outra frustração para mim?”
Senti toda a minha confiança sobre uma corda bamba.
“Pelo que você me disse o Buraco Escuro é o grande progenitor, a vontade de existir trouxe vocês ao mundo, mesmo em um lugar em que nada podia ser visto, ou que nada existisse além da escuridão. E de modo mágico, aqui está você. A sua origem como história pode não ser a essência do seu eu. Mas, a vontade…, a vontade existir está além de nomes, cor, cheiro, formas. Ela é o mínimo necessário para que mantenha a vida nesse mundo…, e até mesmo no Buraco Escuro. A partir dessa vontade, todo o resto torna-se possível, as definições são reais graças a essa vontade e não o contrário”
O silêncio reinou novamente. Eu pensei que ele tinha duvidado de cada palavra dita, eu mesma estava perdida na minha explicação, não conseguiria repeti-la caso ele pedisse.
“Interessante”, disse ele calmamente. Pensei que ele fosse satirizar assim como fizera com o exercício anterior.
“Você perguntou ao Buraco Negro?”
“Sim”
“E então…”, meu coração estava prestes a saltar pela boca de tanta ansiedade.
“Respondeu algo semelhante, em outras palavras”
Respirei aliviada, meus ombros relaxaram a tensão, me joguei em minha cadeira.
“Isso quer dizer que a minha pergunta não tem tanta importância?”
“Sim, pelo menos não há a necessidade de lhe trazer angústia. Ela é mera possibilidade diante da sua existência”
“Entendi. A resposta no fim não era um bicho de sete cabeças…
“Isso é recorrente na minha profissão”, um sorriso brotou no canto de minha boca.
“Enfim, acho que agora posso finalizar a terapia”
“Se assim você o diz”
“Nos despedimos aqui”, disse ele. Percebi que se levantou.
“Espere, tenho que lhe mandar a conta. E já vou avisando que não aceito o pagamento em frutas”, disse utilizando um tom cômico, não pude evitar a deixa.
“Que é isso? Bom, acho que a terapia vale pela experiência. Considere isso como uma possibilidade”, me respondeu com uma voz sorridente.
“Ok”, caímos na gargalhada.
Nos despedimos, ele me agradeceu novamente e partiu, abrindo a porta e tornando-se invisível como nunca me fora.

Fome do Pai

Um estrondo ruidoso não se propagou no vácuo devido às leis básicas da física. Muito embora, pudessem chama-las de leis. Afinal, tudo era muito novo, tudo estava no princípio.
No futuro, em outros tempos, em outras ideologias ou mitologias dirão que no princípio era o verbo. O que sim, era verdade. Embora não apenas um, mas vários: espetar, lamber, abocanhar, mastigar, cercear, triturar, engolir, comer, banquetear, roncar, esfomear e por aí vai.
O estrondo nada mais era do que o ronco do estômago de Cronos, filho do Céu e da Terra, senhor do universo. Sempre faminto, deixando sua boca sedenta se perder no tempo, pois podia manipular as distorções do que poderiam chamar de leis da física e suportar a fome.
Em outros tempos, poderiam dizer que Cronos devorava os seus filhos. O que sim, era verdade. Mas estariam completamente errados quanto ao motivo, caso digam que a sua obsessão em devora-los era por certo terror ao que fizera ao seu pai, o Céu.
Não sentia terror de acontecer o mesmo, quando o próprio Céu o advertiu após ter o corpo rasgado por uma foice. Cronos não temia que um ou mais filhos desejassem destrona-lo.
Enquanto viajava pelo espaço, se deslocando entre ondas de tempo, o senhor do universo pensava nas suas responsabilidades como divindade suprema. Existia todo um legado a respeitar, e o seu sucessor, caso um dia necessitasse existir, mesmo que contra a sua vontade, deveria ser alguém superior a ele.
Nisso, costumava descer até a Terra após contar e dar nomes à estrelas longínquas que tardariam a serem descobertas, se estabelecia em domínios de seus filhos e os observava ocuparem o vazio do existir.
E então, se em sua análise algo fosse suspeito, contundente, aviltante ou que fosse indigno, o senhor do universo não hesitava em materializar um garfo e com grande efeito liberava a vontade de se saciar. O garfo era lançado contra o seu filho, trespassando o corpo místico, fixando a carne divina nas pontas. E em poucos segundos, que eram relativos ao grande ser supremo, sua boca se abria e fechava, juntando seus imensos e incontáveis dentes transformando o seu descendente em uma pasta deliciosa e engolindo até o estômago sedento o dissolver como se uma explosão de uma estrela gigante ali estivesse.
Dessa maneira, Cronos saciava a sua fome. Mas, antes que pudesse se vangloriar de seu feito, os roncos voltavam.
Cronos não escondia dos outros filhos o seu estranho passatempo.
E não tardou para que os que continuavam sobre a face da Terra começar a se consultarem com sua mãe, Cibele, a fim de compreenderem os motivos que levariam o senhor do universo a devorar os próprios filhos.
“Não há nada com o que se preocuparem, afinal, ele tem os seus motivos. Mesmo que isso seja inaceitável, o que poderiam fazer?”, embora seus prantos eram ouvidos sobre a face da Terra toda vez que um filho desaparecia no abismo de Cronos.
Zeus, já em sua adolescência florida coçava a sua barba rala quando ouvia os conselhos da mãe.
“Está angustiado meu irmão?”, indagou Poseidon ao notar o olhar vago de seu irmão mais velho.
“Não, um pouco preocupado com Cronos”
“Com nosso pai? O que te aflige?”
“Não quero estar no estômago dele amanhã”
“E o que te faz pensar que pode estar na pança dele amanhã?”
“Ando com teorias, e nenhuma delas são animadoras. Precisamos conversar em um lugar mais particular, de modo que ele não nos ouça”, pediu Zeus seriamente para Poseidon.
“Tudo bem. Podemos ir até Hades. Ele pode nos levar a uma gruta nas entranhas da Terra. Se não me falha a memória, ele conhece várias”
“Boa ideia, seria bom compartilhar com ele os meus planos”
“Planos? Que eu saiba, planos são mentalizados com o propósito de serem transformados em atitudes”
“Sim, esse é o propósito”
“Estou incerto de suas intenções. Quer tramar contra o nosso pai?”
Zeus levou o indicador à boca, em um gesto imediato por silêncio. Como se as palavras no tom calmo de Poseidon pudessem chegar aos céus.
“Está bem, espere eu terminar aqui”, disse Poseidon enquanto materializava pequenas ovas.
“O que é isso?”
“Será o meu mensageiro no futuro. Ele poderá se materializar em várias formas. Levará as minhas mensagens às terras mais longíquas”
E então Poseidon lançou as ovas no mar.
“Acho que nosso pai se orgulharia desse feito, não acha?”, indagou em um tom provocador.
“Hum, não creio. Héstia, nossa irmã mais velha considerou que a sua criação, uma morada confortável da qual batizou de ‘Lar’, encheria nosso pai de orgulho. O que sucedeu foi que ela foi para em uma morada nada hospitaleira, foi emborcada em um vulto só”
Poseidon engoliu a seco, o que nunca havia lhe ocorrido.
“Pois então vamos nos encontrar com Hades agora mesmo”
E assim eles rumaram ao encontro de Hades, que era mais velho, porém, muito imaturo. Hades era muito chato aos olhos dos dois irmãos. Sempre que iniciavam algum debate, Hades achava necessário ser o detentor da palavra final. Ele mesmo proclamava-se como criador do conceito do fim. E sempre que dizia ter vencido um debate, seus irmãos se entreolhavam como se trocassem mensagens telepáticas e num gesto afirmativo sabiam que deram a palavra final ao irmão meticuloso apenas para calar a boca.
“Olá irmão, como está?”, indagou Poseidon.
“O que vocês querem?”, Hades não escondia seu tom irritadiço.
“Viemos falar sobre algo muito importante”
“Vieram me desafiar para um debate?”
“Não, viemos falar de algo que interessa a todos. É sobre o quem vem acontecendo aos nossos irmãos e que certamente poderá ser o nosso destino também”
“Entendi. É sobre o nosso pai?”
Novamente Zeus advertiu com um gesto para que não comentasse a respeito. Poseidon confirmou e murmurou algo.
“Por que tanto silêncio oras?”
“Ele não pode nos ouvir”
“Por que não?”
“Por que entraria em ira se soubesse que estamos tramando contra ele e viria até aqui num piscar de olhos para nos devorar”
“Mas, quanta idiotice. Por que tramaríamos contra ele? Nossa mãe disse que estava tudo nos conformes”
“Você realmente está satisfeito e seguro com as recentes ocorrências?”, perguntou o petulante Zeus.
“Acredito que no fim eu estarei, não me preocupo com isso”
“Pois bem, então viemos até aqui à toa Poseidon”
“Espere Zeus. Hades, apenas me responda uma coisa, o que você fez de útil que poderia orgulhar o nosso pai, senhor do universo?”
Hades abriu a boca para responder de imediato, mas sua voz não saiu. Ele ficou boquiaberto como se tivesse sido petrificado. Tentava encontrar as palavras para convencer os irmãos.
“Vejo que no fim, não está tão certo assim”
“Está bem, vocês venceram. Não ando dormindo nas últimas noites por pensar nos fatos recentes, mas se vamos conspirar, temos que fazer em um local mais discreto”
“Concordamos, sugere algo?”
“Sim, nos subterrâneos, nas entranhas da Terra”
Os três irmãos então desceram os níveis da crosta terrestre, chegando a grutas aquecidas e empestadas pelo cheiro de enxofre.
“Que lugar é esse? Nós entramos por uma montanha, mas nunca imaginei estruturas desse tipo?”
“Eu costumo chamar de Tártaro, mas preciso cavar mais, pois ainda não cheguei ao fim”
Estando em um local escuro, Hades trouxe luz com um fogo flutuante.
“Aqui estamos, comeceis a falar”
“Diante do que nosso pai anda fazendo, acho que temos que enfrenta-lo”, disparou Zeus, com um tom baixo, ainda temendo que tais palavras pudessem ser transportadas além das milhões de toneladas da estrutura rochosa acima deles e chegasse aos ouvidos de Cronos.
“Teríamos que utilizar o elemento surpresa, não podemos invoca-lo e marcar um duelo, seria uma desvantagem para nós”, disse Poseidon.
“Então planeje o engodo”, Hades parecia não ter esperanças.
“Sim, tenho algo em mente. Todavia, tenho que lembra-los que a queda de nosso pai deixará o trono ausente, e o universo não pode ficar sem um comandante”
“Sim, bem lembrado, então temos que definir como será a sucessão”
“Sim Poseidon, eu já deixei a partilha nos seguintes termos: cada um de nós terá um domínio”
“Hum, gostei, mas você já decidiu por nós ou teremos como escolher os domínios?”
“Eu escolhi o que considerei o mais adequado para cada um de nós”
“Baseado em quais critérios?”
“Nas suas próprias vocações”
“Prossiga irmão, estou curioso”
“Você Poseidon, ficará com os mares, todos eles”
“Serei o senhor de todos os mares?”
“Sim, não é você que vive nele, sempre criando peixes e serpentes marinhas? Pois bem, o domínio dos mares será todo seu”
“Hum, minhas suspeitas se confirmam”
“E com o que é que eu fico?”
“Vocês têm que confessar que eu sou um visionário”
Poseidon e Hades entortaram o olhar desconfiados da vaidade do jovem irmão.
“Eu percebi que a demanda por vida humana irá aumentar, será uma coisa natural, eles vão se multiplicar a um número incontável como as estrelas dos céus. E consequentemente a morte os apanhará quando a hora definida pelo destino chegar. E para irá as almas desses mortais?”
Os dois não souberam responder.
“Para o seu domínio Hades”
“Meu domínio?”
“Sim. Será seu o reino dos mortos”
“O meu domínio será o reino dos mortos? E qual a lógica de que as minhas vocações me definem como senhor do reino dos mortos?”
“Ora meu irmão Hades, você não se diz como o definidor do fim? Pois então, é totalmente apropriada a ideia de tal posse, pois somente você poderia dominar o fim da vida dos mortais”
E então Hades pensou melhor, após a justificativa de Zeus a proposta soava melhor.
“Aceito”
“Então vamos aos planos…”
“Espere”, Hades fechou o olhar desconfiado.
“Sim irmão, algum problema?”
“E qual seria o seu domínio?”
“Ah, eu…, bom, eu não sei bem o que seria mais adequado para mim. Gosto de muitas coisas, não sei qual a minha vocação. Nisso, ficarei no trono como líder supremo, pois de lá poderei realizar várias tarefas distintas até encontrar o que seria a minha ocupação definitiva.
Hades e Poseidon se entreolharam, conheciam a prepotência do irmão mais novo, e sabiam que ele ambicionava um poder além do que lhes fora destinados. Mas diante das circunstâncias tiveram que aceitar, discutiriam a sucessão depois. Os domínios oferecidos já estavam de bom tamanho.
E então, os três filhos de Cronos, unidos com o propósito de derrubarem o próprio pai planejaram o grande golpe. Após muita discussão chegaram a uma boa estratégia para o engodo. Ao retornarem para a superfície eles partiram em direções opostas para dar início ao plano.
Cronos deslizava pelas nebulosas. Um ronco explodiu enquanto ele separava pequenos conjuntos de massas para formar satélites em um planeta.
Já não sendo de sua vontade permanecer ali decidiu voltar à Terra para saber do comportamento de algum filho seu.
Por coincidência, assim que pousou seu corpo gigante no solo, Zeus invocou sua presença. A cerimônia além de formal devia ter toda a subordinação explícita. Não podia invocar a presença do senhor do universo sem o devido respeito.
“Olá grande pai, senhor do universo”
“Olá filho, qual a razão de invocar a minha grandiosa presença em tal lugar?”, Cronos percebeu de que estavam em uma praia, próximo da divisão da areia com a maré.
“Eu gostaria de lhe mostrar algo que lhe trará orgulho de sua descendência”
“Hum, e o que seria?”
“Bom, antes de mostrar a você, eu gostaria que deixasse o seu garfo no chão, para que não haja infortúnios e que sua ira seja declarada”
Cronos ficou surpreso com o pedido, mas não desconfiou de nada. Sendo assim, largou o garfo que caiu pesadamente sobre a areia úmida. O garfo se posto de pé teria a altura de Zeus.
Cronos era dez vezes maior do que seus filhos, ele gostava daquela estatura, tinha a consciência de sua grandeza divina e sabia que ela devia ser proporcional materialmente.
“Pois bem, ande logo, mostre-me o que criaste”
“Sim”, Zeus estendeu as suas mãos. Nuvens brancas que estavam dispersas começaram a se acumular.
“Vai criar um dilúvio?”, Indagou Cronos debochadamente.
“Não, algo muito mais potente do que isso”
E então, quando o céu foi coberto por nuvens negras e o dia tornou-se escuro como noite um feixe de luz voou até as mãos de Zeus.
Com as mãos próximas ele conteve a energia e o calor emitido o fez pingar de suor.
“Hum, o que é isso? Um raio?”
“Sim”, Zeus respondeu com esforço, pois conter o raio consumia quase toda a sua energia.
“Essa é a sua grande invenção?”, Cronos não se mostrou perplexo.
“Sim, não gostou?”
“Eu vi bilhões de raios no céu, raios maiores do que a Terra e a luz destes cegariam todos que tivessem a capacidade de enxergá-los”
“Eu levei um bom tempo para fazer isso, pensei que fosse se orgulhar”
“Tempo não importa meu jovem”, o estômago do senhor do universo roncou como se pedisse para finalizar a conversa e que saciasse a grande fome.
“Você fez sozinho?”, indagou Cronos como se a resposta pudesse ser fatal.
“Bom, não, eu tive a ajuda dos Ciclopes”
“Dos gigntes babões de um olho só?”
“Sim, eles mesmos”
“Precisar da ajuda dos Ciclopes para construir algo tão patético. Isso lhe dá o direito de ser classificado como indigno”
“Mas, indigno? De lhe suceder?”
“Exato filho, não merece o trono”, e Cronos se surpreendeu por neste momento, ao invés de surgiu um olhar de terror, Zeus abriu um sorriso demasiado provocador.
“Pois bem. Então o que fará? Me devorar?”
“Garoto arrogante. Merece sim, ser mastigado lentamente até sua carne se desfazer em minha boca”, e então Cronos estendeu a mão para pegar o garfo que havia largado na areia, mas foi surpreendido ao ver que o objeto não se encontrava lá.
Ele voltou a sua atenção para Zeus que ainda concentrava esforço para conter o raio em suas mãos.
“O que está havendo aqui? Onde está o meu garfo?”
Zeus não respondeu. Quando Cronos pensou em partir para cima do jovem, sentiu algo ferir as suas costas. Um arpão atravessou seu corpo.
Ao se virar viu Hades que enlameado havia aparecido da terra.
“Foi você quem pegou meu garfo, jovem tolo?”
“Não, eu só o feri com meu arpão”, respondeu Hades sem demonstrar medo diante do olhar aterrador de seu pai.
E antes que Cronos desse conta, uma onda disparou formando um cone d’água, cuja ponta sobressaltou o seu garfo. O golpe foi tão veloz que o senhor do universo não pôde se defender.
O gigante corpo do supremo deus tinha duas armas fincadas.
Ele não estava acostumado com dores, então realmente ficou perturbado com a situação. Ele viu Poseidon surgir.
“Vocês se uniram para me enfrentar. Que coisa mais desagradável”
Ele cambaleou, caiu de joelhos de frente para Zeus.
“Golpe de misericórdia?”
“Mais ou menos”, e Zeus liberou a força do raio contra o abdome de Cronos.
A potência do golpe comprimiu os órgãos divinos de tal maneira que ele regurgitou todos os filhos devorados que foram restaurados à sua forma original como se nada tivesse acontecido.
Uma fraqueza incomum tornou tudo rodopiante e o senhor do universo caiu ao chão, sentiu frio.
“Vocês não deviam ter feito isso. Meus irmãos, os Titãs, irão me vingar”
“Não, não vão. Nós os derrotamos um a um e cuidamos para que fossem aprisionados”
“O que? Mas como?”
“Não importa como. O que importa é que não haverá uma guerra entre primeira e segunda geração de deuses, poupamos o mundo de algo tão destruidor”
Cronos viu todos os filhos que devorou na praia. Mesmo que conseguisse forças para se levantar não teria como lutar com todos ao mesmo tempo.
Hades retirou de seu corpo o arpão. Poseidon retirou o garfo.
“Vou ficar com isso. Nosso pai o energizou muito e também servirá de lembrança”
Zeus deu de ombros.
Cronos olhou para os três que exibiam sorrisos vitoriosos.
“Filhos de parricida, parricidas são”, apenas murmurou e seu estômago roncou.
O senhor do universo, caído, fraco, humilhado, não encontrou outras palavras e decidiu não lançar maldição sobre seus filhos como fizera o Céu, seu pai.
“Pois bem, qual será o meu fim?”, indagou.
“Isso é tarefa minha”, disse Hades que se aproximou do corpo caído do pai e tocando as suas feridas os dois se desfizeram em nuvens de enxofre desaparecendo dali.
Cronos foi para o Tártaro, juntamente com seus irmãos, os Titãs. E então os seus filhos tomaram posses das criações, cada um com o seu domínio.
No futuro, em outros tempos, em outras ideologias ou mitologias dirão muito sobre a loucura de Cronos. Dirão que os raios são uma lembrança do que houve no dia em que ele fora destronado. E que acordado pelos raios, os roncos de seu estômago explodirão em estrondo  indicando uma fome desejando ser saciada. E que ele estaria desejando o seu retorno ao trono enquanto sofre nas entranhas da Terra, pois o tempo não o incomoda. O que sim, é verdade.

Goya_saturno-devorando-seu-filho

Mariposa Morta

“Por que você matou a burbroleta?”, perguntou sua filha inconformada. Seus pequenos olhos lacrimejaram e criaram um brilho angelical.
“Porque sim!”, Paulo respondeu do modo mais grosso possível, não somente para demonstrar sua autoridade sobre sua filha de quatro anos, mas para deixar claro de que não iria discutir com ela.
Sua filha agachou para olhar a borboleta pisoteada. Seu corpo não fora totalmente esmagado, somente parte da asa.
“Agora já pra cama!”, ordenou seu pai.
Ela se dirigiu ao seu quarto com a garganta doendo, segurando um choro.
Paulo olhou para a mariposa que invadiu a sala. Ela havia entrado pela janela, ligeira, como se conhecesse o local e estivesse apenas fazendo uma visita.
Paulo se levantou do sofá, pegou seu chinelo e rebateu a mariposa indefesa fazendo-a ficar abobada e cair próximo ao rodapé do canto da sala. Sem titubear, pisou nela, com a intenção de matá-la. Sua filha que testemunhou a cena, ficou assustada, mas quando reparou que a forma lembrava a uma borboleta abriu um sorriso que durou três segundos.
Paulo ficou pensando se o que fez foi algo desnecessário. Não havia necessidade de matar a mariposa. Ela devia estar perdida, ou então a procura de comida para alimentar sua família. O nível de ameaça que representava era praticamente zero.
“Por que diabos fui matar essa coisa feia?”, se perguntou. Aproveitando de que sua filha foi dormir ele voltou a assistir o mesmo programa fútil de todas as noites de domingo. Mas por mais que se esforçasse não conseguia tirar a imagem da mariposa morta de sua mente. Algo o perturbava. Não conseguia ao menos retirar o corpo dela da sala. Deixaria essa tarefa para sua mulher assim que ela voltasse da igreja.
Quando se deu conta, Paulo estava alternando os canais para ver se encontrava alguma atração que fosse mais interessante e ocupasse seus pensamentos.
“… a religião Jainista prega a abnegação e a não-violência, seus monges usam bocais para evitar que algum inseto entre e seja morto…”, o único documentário que era exibido naquele horário e ele pegou justamente um trecho que fez com que a mariposa revivesse. Em fúria, ele desligou a televisão ao ver a imagem de monges vestidos de branco e usando bocais. Como não havia jantado resolveu preparar uma refeição.
Ao olhar o refrigerador se deparou com várias bandejas de carnes, algumas, com etiquetas contendo descritivos sobre a qualidade e até mesmo com as imagens dos animais abatidos. Ao pegar uma bandeja de contra-filé e observar a imagem de um boi com olhar fotogênico veio do modo mais natural possível a cena daquele animal perdendo sua vida no abatedouro. Por mais que seu apetite fosse o de comer um boi inteiro, ele preparou uma salada e fritou um omelete.
Sua mulher voltara, toda cheia de esperança de que a vida melhoraria nos próximos dias, pois o sermão havia sido inspirador e motivador. Mas seu sorriso se perdeu ao notar a mariposa morta próxima ao rodapé.
“O que é isso?”, indagou.
“Uma mariposa”
“Por que você matou ela?”
“Ah, você também. Eu vou dormir, não quero papo. Joga essa coisa feia no lixo”
Aquela noite foi longa. Sua mulher não comentou sobre a morte da mariposa, mas Paulo sabia que ela compartilhava da piedade e indignação da filha. O sono tardou a dominá-lo. Enquanto isso, procurava alguma posição confortável para adormecer. E mesmo depois do que parecia ser horas, seu estado de sonolência foi um dos piores de sua vida.
Seus sonhos foram dominados pelo espírito vingativo da mariposa morta. A cena do que ocorreu na sala era repetida centenas de vezes, sempre com algum detalhe do cenário sendo modificado. Em um momento sua filha chorava esperneando e pulando no chão, em outro, ela apenas balançava a cabeça negativamente, deixando transparecer toda a sua decepção com ele. Várias vezes, a mesma cena, sempre com algum detalhe diferente, como estivesse tentando corrigir seu erro. Mas toda vez seu chinelo pesado comprimia o frágil corpo da criatura contra o chão, despedaçando parte de suas asas e mantendo o resto intacto.
“O que aquilo queria dizer?”, refletia.
No dia seguinte, segunda-feira chuvosa, seu trabalho não rendia como esperado. Era um funcionário exemplar, mas seu cansaço estava afetando seu desempenho. Um motorista de uma empresa especializada em entregas devia estar totalmente recomposto.
Atrasou dois compromissos e aquilo repercutiu de forma desagradável. No final da tarde foi chamado à sala de seu chefe.
Ao entrar foi agraciado com temperatura controlada do cômodo e vários prêmios importantes do meio logístico numa estante de vidro, e ainda, de quebra, reparou que seu chefe exibia um sorriso amigável.
“Me desculpe, eu não tive uma noite muito boa e…”, Paulo decidiu declarar a sua culpa e já pedir perdão.
“Espera Paulão, fica calmo!”, seu chefe riu. “Eu não vou te dar bronca. O que ocorreu hoje não foi bom, mas não vou te queimar. Você é um dos meus melhores e como nunca deu mancada te dou toda a oportunidade de se explicar. Eu só queria saber se está tudo bem, se precisa de algo. Se quiser conversar ou pedir algo, agora é a hora”
Em outro momento aquela situação cairia como uma luva. Era a oportunidade exata para pedir uma aumento salarial, mas ao invés disso, Paulo sentiu a necessidade de desabafar.
“Sabe aquela sensação de você estar se sentindo mal? Mas mal no sentido de malvado, sabe? Mau!”
Seu chefe contorceu seu beiço como se concordasse com ele. Expressão essa muito usada por ele. Na verdade, todos os seus funcionários já sabiam de que era um mero sinal de que a conversa seria iludida por sua compreensão.
“Sei sim. O que aconteceu?”
“Eu notei hoje de manhã numa esquina, um padeiro correndo com uma vassoura atrás de um rato. Ele queria matar o rato. Eu sei que era por questão de higiene, mas fiquei pensando em como nós somos, como posso dizer…, como nós somos maiores em relação aos outros animais”
“Superiores?”
“Isso, superiores. Quer dizer, hoje nós dominamos todo o resto, né?”
“Sim, até onde eu sei, dominamos tudo”
“E eu estava pensando, há necessidade de certas coisas?”
“Olha Paulão, eu entendi o que está pensando. Você está se sentindo culpado por uma dádiva. Nós somos os dominadores do mundo, mas já fomos presa fácil quando pulávamos de galho em galho. Conquistamos nosso espaço. Não somos ameaçados por nada. Tudo bem que não podemos jogar uma pedra em um leão faminto, mas hoje nós podemos aprisionar qualquer animal que desejamos. Nós temos o poder de predadores, mas isso faz parte de um papel desempenhado não somente por sermos humanos, mas seria a atitude de qual raça que fosse que estivesse no topo, entende?” seu chefe inclinou um pouco para trás em sua cadeira confortável e se orgulhou de sua explicação, mas voltou seu olhar para Paulo e continuou: “Mas ainda não entendo como isso te abalou. Você viu o padeiro matar o rato e isso o distraiu o dia inteiro?”
“Não, eu não me preocupei com o rato, porque ele era muito rápido e fugiu para um bueiro antes que o padeiro conseguisse pensar em acertá-lo”
“Mas por que me contou isso?”
“É que na verdade aconteceu ontem o lance”
“O que aconteceu ontem?” Paulo contou o ocorrido. Pensou que após toda aquela história sobre raça dominante o seu chefe torceria o beiço e o chamasse de idiota por se sensibilizar com aquilo. Mas a reação foi a de que seu chefe ficou tentando buscar alguma explicação.
“Mas por que você matou ela?”, perguntou. “Não bastava tê-la espantado para fora?” Paulo sentiu o fantasma da mariposa estar sobrevoando a sala.
Se até mesmo seu chefe que era orgulhoso de estar no topo da pirâmide da cadeia alimentar não amenizou a sua confusão, então estaria ele perdido?
“Tire o dia pra descansar Paulão”, ordenou seu chefe com um sorriso forçado.
Ao chegar em casa ele foi até a lixeira procurar pelos restos mortais da mariposa. Não estava lá. Desta forma, chegou a conclusão de que o lixo fora retirado e naquela altura seu corpo estaria todo esmagado com resíduos diversos.
Mas por que ele queria vê-la? Não tinha como desfazer seu ato. Como sua mulher e filha não estavam em casa, decidiu deitar para relaxar e compensar o sono atrasado. Acordou no meio da madrugada, sua mulher deitada ao seu lado e toda a casa escura. Foi até a cozinha pegar algo para comer, apenas para tapear o estômago.
Ao acender a luz viu sobre a pia uma formiga carregando um grão de arroz cozido, que devia ter caído da panela. Quase sem pensar seu dedo indicador foi levado para esmagá-la, quando que, por poucos milímetros parou e viu a mariposa viva em sua mente.
Um espírito vingador. Vingador?
Afastou o dedo titânico e observou a formiga, notável trabalhadora, sumir.
Por um momento, pensou ter visto a mariposa passar pela cozinha e desaparecer pela janela. Sentiu-se aliviado.
Como pode um animal tão indefeso afetar um ser superior?

Ótimo nos Negócios

Encostada á porteira da fazenda de seu pai, uma moça de beleza notável encaracolava o cabelo com os dedos. Viu ao longe um homem vestindo roupas diferentes e levando consigo uma mala de médio porte.
Quando este homem se aproximou parou ao ver a moça bonita.
“Boa tarde moça”
“Boa tarde”, respondeu educadamente a bela moça.
“Eu não a conheço de algum lugar?”, perguntou o homem deixando a mala no chão e parando próximo á moça.
“Sou filha do Barão Plínio”, afirmou como se isso bastasse.
“Ah sim, eu bem que sabia que lembrava desse rosto maravilhoso”
“Lembrava?”, a moça se mostrou curiosa.
“Sim, eu a conheci na escola. Não se lembra de mim?”
A moça franziu a testa. Esforçou para se lembrar daquele rosto, mas talvez o bigode estivesse atrapalhando por fazê-lo parecer anos mais velho.
“Me desculpe, mas não me lembro não”
“Me chamo Ahmad”, disse o homem fazendo reverência á moça.
“Ah, agora sim, me recordo. Você é filho do turco, não é?”
“Sírio”
“Ah sim, me desculpe, mas você não tinha viajado para o estrangeiro?”
“Sim, viajei. Vou além dessas terras todos os anos”
“E você está indo viajar de novo?”, indagou a moça apontando com um olhar a mala de médio porte.
“Sim, sempre estou viajando”
“E o que você está fazendo da vida?”, a moça não pôde esconder a sua curiosidade.
“Eu sou um mascate”
“Ah…”, ela não conseguiu esconder a sua frustração. Do pouco que se lembrava dele era que era excepcional em matemática e ciências, e todos os professores indicavam que seu futuro era promissor, a maioria arriscava dizer que seria engenheiro ou médico.
“Não me pareceu muito impressionada.”, Ahmad exibiu um sorriso modesto.
“Não, é que não sei como consegue se sustentar com isso”
“Ora, sou ótimo nos negócios”
“Bom, me desculpe se fui rude com você”
“Não se preocupe, posso mostrar a você a vantagem de ser um mascate”
“Não precisa, se você diz que…”
“Permita-me bela moça.”, Ahmad abriu a sua mala e começou a tirar vários objetos de seu interior.
Ela não gostou do fato dele não dizer seu nome.
“Além de eu estar conhecendo o globo, viajar pelos sete mares, conhecer rostos diferentes, culturas diferentes, respirar outros ares e me apaixonar por mulheres com olhares distintos, eu também tenho contato com criações maravilhosas, como esta por exemplo”, ele mostrou uma pena.
“O que é isso?”, indagou a moça curiosa.
“Isso foi a caneta de um rei da Inglaterra”
“Jura?”
“Uhum. E tenho isto também”, ele guardou a pena e pegou um bumerangue.
“Que é…”
“Um bumerangue usado pelos aborígines da Austrália”
“Que interessante”
“Tenho também isto”, guardou o bumerangue e pegou um frasco violeta.
“É um perfume?”
“Sim, muito forte para fazer que alguém se renda aos seus encantos, mas acho que você não precisaria dele”
Ela abafou um riso e se sentiu um merecedora do elogio.
“Ahmad, você visitou a terra de origem dos seus pais?”
“Sim”
“Conheceu o deserto do Saara?”
“Minha família não é de lá, mas sim. Eu viajei pelas dunas do Saara com uma caravana de beduínos”
“E você encontrou alguma lâmpada mágica?”, ela se sentiu idiota ao ter perguntado aquilo.
“Bom, não uma lâmpada, mas tenho isso”, ele retirou um pequeno tambor, do tamanho da palma de sua mão.
“Mas tem um gênio mágico aí dentro?”, ela tentou se mostrar irônica ao formular a pergunta, mesmo na verdade querer acreditar naquela fantasia.
“Na verdade, tem um Djin. Sim, para que ele saia daqui eu dou três toques com o meu polegar”
“Jura?”
“E quanto é? Eu posso pedir para o meu pai comprar”
“Humm, pode ser seu se você quiser”
“Jura?”
“Sim, mas tem pagar mesmo assim”
“Hã? Não entendi”
“Um beijo”
“Ficou maluco? Eu não vou beijar você”
“Tudo bem, a escolha é sua”, Ahmad ia fechando a sua mala e fez menção de ir embora.
“Não, espere”, a moça olhou para trás, onde estava o casarão de sua família. Quis se certificar de que não havia curioso algum olhando para eles naquele momento.
“Um beijo?”
“Sim”
Ahmad abriu um sorriso vitorioso. Se aproximou da moça e eles se entregaram a um beijo quente.
Apesar dela sentir uma repulsa por se vender por algo que parecia ser um absurdo ela acabou gostando do ato.
“É todo seu”, disse ele entregando o pequeno tambor.
De imediato ela se apoderou do objeto e deu três toques com o polegar esperando que um gênio saísse de lá por uma fina fumaça e se materializasse, pronto a realizar os seus desejos. No entanto, nada aconteceu.
“Mentiroso!”
“Ora, ora. Por que ficou brava?”
“Você disse que ele saía daqui com três toques do polegar”
“Sim, esta é a forma que ele sai comigo. Você precisa descobrir como será com você. Do seu jeito”
“Sério?”, por um momento ela se sentiu idiota. Mas no fim, precisou acreditar.
“Sim. Preciso ir minha bela. O trem parte logo mais e é uma longa caminha daqui”
O mascate mandou um beijo no ar e começou a andar pela estrada.
“Espere”
“Sim”
“Você está usando aquele perfume?”
“Não. Eu não preciso”
“Quando você vai voltar?”
“Antes de você se casar”, respondeu com um sorriso malicioso.
“Então faz o favor de me trazer um presente”, disse ela se entregando ao momento.
“Pode deixar minha bela. Pode deixar”
E assim o mascate partiu, para seu destino. Deixando para trás mais uma vitória. Mais um coração esperançoso.

Coquetel Demático

“Tem que ser Dema”, dizia o gordo. Ele se referia ao nome do coquetel que estávamos prestes a inventar.
“Por que Dema? o que quer dizer?”, perguntou o mais inteligente.
“Dema de gema? Vai gema nisso?”, indagou o mais bobo, porém, mais fiel.
“Não saquei”, disse o cabeludo.
“Também não entendi”, esse sou eu compartilhando a dúvida de todos.
“Dema é a mulher do demônio. Nossa amante. Sacaram?”, justificou o gordo.
“Que lixo velho”, o mais inteligente arrumava as coisas para preparar a bebida.
“E aí, vai ser Dema mesmo?”, o mais bobo estava curioso.
“Por mim tudo bem, não tenho outro nome em mente”, na verdade eu não ligava muito.
Todos nós estávamos na casa dos catorze anos. Todos órfãos de pai.
Era uma época que transpirava rebeldia. Tudo era motivo de sermos rebeldes á maneira de garotos com catorze anos.
Começamos a fumar, saímos ás ruas praticando anarquias como dar voadoras nas lixeiras de ferro e deixa-las retorcidas, lançar nossos chinelos ou tênis contra os semáforos e trocar placas de “Aluga” e “Vende” das casas.
Muitas coisas que na época não nos fazia sentir envergonhados. Muito pelo contrário.
Toda vez que topávamos com outro grupo tínhamos que impor respeito.
Na maioria das vezes esse respeito custava um supercílio rasgado e muito sangue nas camisetas.
Naquele dia decidimos ficar na casa do cabeludo, já que sua mãe viajava.
E como o ócio parecia rir de nossas caras, resolvemos inovar.
E enquanto na televisão campeonatos de luta livre eram exibidos nós preparávamos o nosso coquetel.
“Dema, Dema, Dema”, o mais gordo tragava o seu cigarro e cuspia a fumaça como um mafioso exibindo sua superioridade aos capangas.
Ele jogou as cinzas na jarra de vidro.
“Vai ficar lindo isso”, o mais inteligente estava empolgado, parecia que usaríamos algum tipo de droga que nos faria ter alucinações e nos levasse a outros mundos.
“Joga isso também”, o cabeludo jogou um pouco de macarronada passada na jarra.
“De quando é isso?”, perguntei, incrédulo.
“Semana passada, antes de minha mãe viajar”
Jogamos as bitucas de cigarro também. Mostarda, maionese, refrigerante, um gafanhoto morto preso no véu da cortina da sala, pimenta, queijo gorgonzola, óleo de frigideira, dois ovos crus, uísque, vodka e um pouco de uma pinga de quinta categoria.
Tampando a jarra, agitamos o conteúdo mutante.
Foi uma época que queríamos explorar todo tipo de experiência politicamente incorreta.
Até hoje fico imaginando o que se passava na minha cabeça.
Anos mais tarde vi uma cena de um filme americano. Era sobre loucuras de uns jovens, na verdade eram adultos já. Eles faziam todo tipo de loucura possível e se colocavam como voluntários no que parecia ser um filme de dublês para cenas sem propósito.
O rapaz pegou um funil e uma mangueira, encaixou os dois e olhando para a câmera diz: “Me desculpe pai” e em seguida coloca a outra ponta na mangueira na bunda. Os amigos enchem o funil com cerveja para que ele bebesse pelo anus.
O engraçado disso foi a consciência dele pesar e já se desculpar ao pai.
Nós não tínhamos essa consciência.
Mas acho que cada um guardava uma paranóia para si.
Eu por exemplo, acreditava que os espíritos passados davam suas espiadas de vez em quando para ver como eu me comportava. Meu pai, avô, bisavô, tataravô e assim por diante. É lógico que eles sempre se decepcionavam e depois deviam procurar por um dos meus primos, que eram menos insanos.
Procurei razões que justificassem as nossas ações. Vazio de uma figura paterna?
Não sei. Acho que aquilo foi apenas uma desculpa para minimizar as nossas responsabilidades ao nos colocar como vítimas.
“Quem vomitar vai beber de volta”, disse o mais inteligente.
De todas as conclusões possíveis nenhuma satisfaz a minha dúvida.
Nossas mães diziam que era apenas uma fase. E de fato, estavam certas.
Mas vimos muitos se levarem nessa fase.
Queria realmente poder entender aquela coragem.
Coragem de beber um coquetel daquele e não sentir vontade de vomitar.
“Vamos, só falta você”, disse o mais bobo com os olhos marejados e com uma careta.
Eu segurava o copo e tinha o olhar perdido.
“O que foi?”, perguntaram.
Eu não ia desistir. Apenas realizava uma cerimônia.
E o coquetel desceu, um cheiro anormal e um ardido fizeram os meus olhos lacrimejarem. Exageramos na pimenta.
Ao terminar, apenas pensei: “Me desculpe pai, avô, bisavô, tataravô…”

Engasgado com farofa e carne seca

Euclides refletia sobre um de seus pensamentos acerca das guerras. Ele afirmava com absoluta certeza de que não eram as questões gananciosas e envoltas nos interesses egocêntricos que faziam os mísseis teleguiados serem disparados a distâncias intercontinentais para bombardear o território do inimigo. Tudo era uma questão de atribuição forçada de cultura, como ele preferia dizer a colegas com maior nível acadêmico.
Todos esses colegas, não amigos, mas companheiros de jantares filosóficos, o apoiavam e exaltavam as suas reflexões como se fosse um mentor socrático.
Seu pensamento era de que as nações conquistavam umas às outras para propagar a sua cultura, o seu modo de viver. E isso, em sua opinião, ocorria porque os membros de uma sociedade se sentem incomodados com um vazio quando estão rente a outra cultura. Os fatores econômicos que cobriam esses reais interesses eram usados apenas como forma de aproveitar e praticar o útil e agradável.
Os seus amigos o bajulavam em excesso e às vezes o elogiavam de modos falsos, mas ele adorava aquilo, compensava as falas pedantes. Fazia parte de sua carne. Um carinho no ego.
Naquela noite, porém, Euclides estava sozinho na mesa de um restaurante recém inaugurado.
Seus amigos não o atenderam ou inventaram desculpas para evitar o encontro.
Aquilo o incomodou e fez seus sentimentos recordar seu preconceito.
Sim, Euclides era preconceituoso. Não se considerava racista. Odiava ouvir a palavra racista para descrever o seu preconceito. Não odiava outras raças. Era sempre um ser humano que não pertencia ao seu meio.
Um ódio que conhecia bem começou a efervescer e para tentar se acalmar começou a comer depressa.
O prato que pedira era um arroz parboilizado com um feijão verde cozinhado junto com lentinha.
Também tinha mandioca requentada na manteiga e uma tigela com farofa e carne seca fora posta ao lado.
Em sua loucura de raiva comeu tudo e esqueceu a farofa com carne seca. Ficou mais irritado e começou a comê-la pura, pois também já havia bebido seu vinho tinto.
O que foi um erro. Devia ter pedido uma bebida, pois em movimentos rápidos e mal mastigando os pedaços da carne, sentiu algo entalar.
“Aargh”
Forçou para que voltasse à boca para mastigar melhor, mas o volume se recusava a se mover.
Passou uns quinze segundos e quando seu rosto já estava parecendo um pimentão se levantou brutalmente como se o ato pudesse solucionar por si só. Imaginou que a gravidade diferisse em uma casa decimal fosse lá por qual cálculo que sua mente desesperada especulou.
Olhou para os lados, viu um garçom que levava em refrigerante na bandeja.
O jovem garçom foi alertado por um casal que apontaram para Euclides que quase babava e estava desesperado.
O rapaz, muito prestativo, correu até ele, para ajudá-lo.
Mas Euclides estendeu um braço sinalizando para que o garçom não se aproximasse.
A razão disso? O jovem era negro.
Euclides não suportaria a idéia de ser ajudado por um negro.
E em meros dois segundos ele lembrou de outra coisa que não gostava sobre o preconceito.
Quando descreviam uma pessoa como sendo alguém de cor.
“Ora, tudo tem cor”. Ele considerava um absurdo as pessoas falarem aquilo.
Deu dois passos para trás. Deixou bem claro que não queria a ajuda dele.
Um senhor se levantou e fez menção de ajudá-lo, mas Euclides repetiu o ato.
Ele estendeu o braço e balançou a cabeça negativamente, indicando que não queria ajuda.
Desta vez, o motivo era que ele pensou que o senhor era chinês. E ele tinha um grande preconceito contra chineses. Sabia que o mundo seria devorado pelo gigante vermelho mezzo comunista mezzo capitalista.
Mas o senhor não era chinês. Era coreano. Se bem que, para Euclides, tudo era a mesma coisa.
Outro homem se levantou. Aparentava ser alguém “normal” aos olhos de Euclides.
“Ôche cabra, por que tanto alvoroço? Deixe-me ajudá-lo”
Euclides percebeu o sotaque de nordestino e afastou com violência. Ele estava roxo, mas não seria ajudado por alguém de uma classe que considerava inferior.
Ele olhou para todos no restaurante.
Percebeu que ninguém pertencia a sua classe.
Ninguém presente poderia ajudá-lo, do contrário, seria uma vergonha.
Em desespero, correu em direção à porta. Saiu do restaurante como se fosse fugir para não pagar a conta. Mas estava a procura de alguma ajuda aceitável.
Na calçada, para seu azar, não havia pessoa alguma. Ao menos, o tipo de pessoa que ele considerava. Um homem loiro, de olhos verdes passava do outro lado da rua. Mas, por incrível que pareça, ele não se enquadrou nos requisitos de Euclides naquele momento, o considerou como um branco caucasiano desfocado de sua classe por estar naquela rua, próximo de um lugar com “multivariados”.
Voltou os olhos esbugalhados para dentro do restaurante. Seria mais vergonhoso se voltasse.
E assim, seu fôlego se foi. Seus pulmões forçaram o volume de carne, mas ela, teimosa se recusou a se movimentar. Euclides desmaiou na calçada.
Sua arrogância e ignorância que sempre o manteve em um patamar dito elevado, não puderam aparecer e dar um ou talvez dois simples tapas em suas costas.

Entre os Espelhos

Todos os garotos da faixa de oito a nove anos brincavam de esconde-esconde até o anoitecer e não se importavam com o dia de amanhã, exceto pelo receio de levar uma bronca da professora ao ver que não fizeram o dever de casa. Mas não haviam outras preocupações além dessa. Nada podia atrapalhar a brincadeira, mesmo que o clima resolvesse presenteá-los com um temporal incomum para a época ou que o Sol estivesse lançando seus raios como se estivesse prestes a explodir.
Miguel não corria para se esconder quando alguém batia cara. Saía calmamente atrás de um lugar em que não houvesse nenhum olhar curioso e que houvesse um espelho ou vidro que refletisse bem a sua imagem.
A rua em que morava era isolada do centro urbano. Não havia razões para que carros que não fossem dos moradores ou parentes passassem por ali. E havia muitos idosos que moravam naquela região justamente por ser pacata e tranqüila.
Então não era de se admirar que não houvesse muitos curiosos olhando as crianças brincarem.
Miguel viu um pedaço de espelho que estava encostado na beira do portão de uma casa de um casal de velhinhos que passavam a maior parte do dia na parte de trás do quintal. Aquele espelho estava ali para ser recolhido pelos garis, mas já fazia mais de três semanas que estava ali, sozinho. Ele olhou e reparou que todos os participantes já haviam se escondido em um lugar que julgavam ser estratégico ou que tivesse uma posição favorável.
Quem batia cara era Juquinha e ele, como sempre, não estava de bom-humor.
Miguel viu que Juquinha estava terminando a contagem e que estava prestes a começar a procurá-los:
“quarenta e sete, quarenta e oito, quarenta e nove…”
Miguel encostou o dedo no espelho e tudo ao seu redor se modificou.
“…cinquenta! Lá vou eu, quem se escondeu se escondeuuu!”
Juquinha se virou e começou a andar á procura dos amigos. Passou em frente ao espelho e sentiu um vulto dentro dele, ele olhou, mas nada viu.
Do lado de dentro do espelho, Miguel sorriu ao fitar os olhos do amigo. Atrás de si, havia uma escuridão com poucos pontos de luz distantes, parecendo janelas translúcidas. Ele caminhou pela escuridão, como se estivesse num imenso corredor, procurando por uma porta.
Ao chegar em frente de um ponto de luz viu que o que havia do lado de fora era a parte interna da clinica veterinária que ficava do outro lado do quarteirão. O dono devia ter curado os canários que estavam num viveiro, pois ele se encontrava vazio. Nisso, Miguel continuou a andar pelo corredor escuro, a procura de algo que o distraísse.
Em outro ponto de luz viu o senhor Juscelino, avô da Priscila, que naquele momento ria alto enquanto assistia a um programa humorístico. Ás vezes, a dentadura do idoso se deslocava e tencionava a cair da boca e voar longe, mas o senhor era habilidoso e não a deixava cair.
Passou pelo espelho do quarto de sua mãe, onde via a cama de seus pais. Fora ali, há sete meses atrás, que ele descobrira que podia atravessar espelhos e entrar em um mundo diferente.
E tudo depois de assistir a um filme de super-herói do qual só entenderia o enredo nove anos depois. Ele via as cenas em que o personagem principal pulava com um impulso e seu corpo era arremessado por cima dos capangas do vilão principal. Mal o filme havia terminado e ele correu até o quarto dos pais, todo animado e ansioso se fantasiando como o super-herói e começou a pular em cima do enorme colchão. Isso, sem seus pais ficarem sabendo, era óbvio.
Ele se via no espelho, pulando com um sorriso de orelha a orelha e imaginou vários capangas o cercando. E tentando imitar a melhor cena, ele tentou dar uma cambalhota, mas seu pé entortou e acabou se desequilibrando, fazendo com que fosse arremessado contra o espelho de corpo inteiro que sua mãe adorava de se colocar a frente para admirar um novo vestido.
Ele fechou os seus olhos e esperou que seu rosto estourasse a superfície do vidro, não podia imaginar o estrago que traria á sua juvenil beleza, mas o que quer que tenha passado pela sua cabeça, não se concretizou.
Quando abriu os olhos viu que havia caído num chão, e tudo estava escuro. Quando olhou para trás viu uma borda e o quarto dos pais podia ser observado por um ângulo que nunca pensou em ver.
Certamente que no começo o pequeno Miguel ficou muito assustado e perplexo. Mas aquilo não o traumatizou e o impediu de explorar a experiência mais de uma vez.
E quando se deu conta, ele já se tornou tão habituado com o seu dom que se sentia o melhor na arte.
Miguel correu até um ponto que sabia ser o espelho do quarto da irmã do Marcelinho, ele tinha a esperança de um dia vê-la, pois a achava muito bonita e cada segundo de sua beleza valeria a pena. Porém, como tantos outros, aquele dia estava sem sorte de realizar tal sonho.
Quando ele viu por outras janelas do mundo exterior que os outros participantes já haviam sido pegos ou salvos ele procurou por Juquinha. E ao visualizar o amigo que se encontrava esquadrinhando um canto da esquina, com os olhos atentos ao menor movimento possível, correu até um ponto de luz.
Ele tocou e seu corpo foi transportado para fora e ele caiu meio metro atingindo o chão. Havia acabado de pular uma janela do consultório vazio da mãe da Milena, que ficava próximo á outra esquina, mais próxima ao ponto onde o amigo bateu cara.
Ele andou, a passos largos, mas calmo e sereno, com um sorriso que exaltava a própria vitória.
Juquinha que o viu da outra esquina, iniciou uma corrida que no fim se mostrou desnecessária, pois ele perdeu. Quando chegou, com a respiração forte, arfando e mal conseguindo falar, meneou a cabeça, indicando que Paulinha deveria bater cara.
Antes que a menina começasse a contagem Juquinha ficou ao lado de Miguel, o encarou seriamente e disse:
“Eu sei que você trapaceia. Não sei como, mas tudo o que você faz não vale. Eu vou descobrir”
Juquinha não ficou surpreso, sentiu um certo receio instigante e gostou daquela sensação.
“Tá bom. Me avisa quando descobrir”, respondeu com um sorriso cínico.
Juquinha contorceu seu rosto em uma careta e se afastou dele, pois sabia que Miguel não ousaria mostrar o seu truque com ele perto.
Por precaução, Miguel esperou todas as rodadas em que Juquinha estava livre e não atravessou os espelhos. Aguardou até que fosse a vez dele de bater cara. Enquanto isso ele ficava pensando sobre a acusação. Ele não considerava aquilo uma trapaça. Sabia que era um dom. Ele não saberia montar uma defesa e argumentar que se outros tivessem habilidades que os ajudassem a serem mais rápidos não deveriam se limitar, pois aquilo seria irracional. Mas mesmo sem poder gerar uma réplica ele tinha a noção de reivindicar o seu direito. Mesmo naquela idade.
Ao ver que nenhum olhar curioso os espreitavam, ele adentrou em seu mundo particular, atravessando a superfície fria do vidro.