Um estrondo ruidoso não se propagou no vácuo devido às leis básicas da física. Muito embora, pudessem chama-las de leis. Afinal, tudo era muito novo, tudo estava no princípio.
No futuro, em outros tempos, em outras ideologias ou mitologias dirão que no princípio era o verbo. O que sim, era verdade. Embora não apenas um, mas vários: espetar, lamber, abocanhar, mastigar, cercear, triturar, engolir, comer, banquetear, roncar, esfomear e por aí vai.
O estrondo nada mais era do que o ronco do estômago de Cronos, filho do Céu e da Terra, senhor do universo. Sempre faminto, deixando sua boca sedenta se perder no tempo, pois podia manipular as distorções do que poderiam chamar de leis da física e suportar a fome.
Em outros tempos, poderiam dizer que Cronos devorava os seus filhos. O que sim, era verdade. Mas estariam completamente errados quanto ao motivo, caso digam que a sua obsessão em devora-los era por certo terror ao que fizera ao seu pai, o Céu.
Não sentia terror de acontecer o mesmo, quando o próprio Céu o advertiu após ter o corpo rasgado por uma foice. Cronos não temia que um ou mais filhos desejassem destrona-lo.
Enquanto viajava pelo espaço, se deslocando entre ondas de tempo, o senhor do universo pensava nas suas responsabilidades como divindade suprema. Existia todo um legado a respeitar, e o seu sucessor, caso um dia necessitasse existir, mesmo que contra a sua vontade, deveria ser alguém superior a ele.
Nisso, costumava descer até a Terra após contar e dar nomes à estrelas longínquas que tardariam a serem descobertas, se estabelecia em domínios de seus filhos e os observava ocuparem o vazio do existir.
E então, se em sua análise algo fosse suspeito, contundente, aviltante ou que fosse indigno, o senhor do universo não hesitava em materializar um garfo e com grande efeito liberava a vontade de se saciar. O garfo era lançado contra o seu filho, trespassando o corpo místico, fixando a carne divina nas pontas. E em poucos segundos, que eram relativos ao grande ser supremo, sua boca se abria e fechava, juntando seus imensos e incontáveis dentes transformando o seu descendente em uma pasta deliciosa e engolindo até o estômago sedento o dissolver como se uma explosão de uma estrela gigante ali estivesse.
Dessa maneira, Cronos saciava a sua fome. Mas, antes que pudesse se vangloriar de seu feito, os roncos voltavam.
Cronos não escondia dos outros filhos o seu estranho passatempo.
E não tardou para que os que continuavam sobre a face da Terra começar a se consultarem com sua mãe, Cibele, a fim de compreenderem os motivos que levariam o senhor do universo a devorar os próprios filhos.
“Não há nada com o que se preocuparem, afinal, ele tem os seus motivos. Mesmo que isso seja inaceitável, o que poderiam fazer?”, embora seus prantos eram ouvidos sobre a face da Terra toda vez que um filho desaparecia no abismo de Cronos.
Zeus, já em sua adolescência florida coçava a sua barba rala quando ouvia os conselhos da mãe.
“Está angustiado meu irmão?”, indagou Poseidon ao notar o olhar vago de seu irmão mais velho.
“Não, um pouco preocupado com Cronos”
“Com nosso pai? O que te aflige?”
“Não quero estar no estômago dele amanhã”
“E o que te faz pensar que pode estar na pança dele amanhã?”
“Ando com teorias, e nenhuma delas são animadoras. Precisamos conversar em um lugar mais particular, de modo que ele não nos ouça”, pediu Zeus seriamente para Poseidon.
“Tudo bem. Podemos ir até Hades. Ele pode nos levar a uma gruta nas entranhas da Terra. Se não me falha a memória, ele conhece várias”
“Boa ideia, seria bom compartilhar com ele os meus planos”
“Planos? Que eu saiba, planos são mentalizados com o propósito de serem transformados em atitudes”
“Sim, esse é o propósito”
“Estou incerto de suas intenções. Quer tramar contra o nosso pai?”
Zeus levou o indicador à boca, em um gesto imediato por silêncio. Como se as palavras no tom calmo de Poseidon pudessem chegar aos céus.
“Está bem, espere eu terminar aqui”, disse Poseidon enquanto materializava pequenas ovas.
“O que é isso?”
“Será o meu mensageiro no futuro. Ele poderá se materializar em várias formas. Levará as minhas mensagens às terras mais longíquas”
E então Poseidon lançou as ovas no mar.
“Acho que nosso pai se orgulharia desse feito, não acha?”, indagou em um tom provocador.
“Hum, não creio. Héstia, nossa irmã mais velha considerou que a sua criação, uma morada confortável da qual batizou de ‘Lar’, encheria nosso pai de orgulho. O que sucedeu foi que ela foi para em uma morada nada hospitaleira, foi emborcada em um vulto só”
Poseidon engoliu a seco, o que nunca havia lhe ocorrido.
“Pois então vamos nos encontrar com Hades agora mesmo”
E assim eles rumaram ao encontro de Hades, que era mais velho, porém, muito imaturo. Hades era muito chato aos olhos dos dois irmãos. Sempre que iniciavam algum debate, Hades achava necessário ser o detentor da palavra final. Ele mesmo proclamava-se como criador do conceito do fim. E sempre que dizia ter vencido um debate, seus irmãos se entreolhavam como se trocassem mensagens telepáticas e num gesto afirmativo sabiam que deram a palavra final ao irmão meticuloso apenas para calar a boca.
“Olá irmão, como está?”, indagou Poseidon.
“O que vocês querem?”, Hades não escondia seu tom irritadiço.
“Viemos falar sobre algo muito importante”
“Vieram me desafiar para um debate?”
“Não, viemos falar de algo que interessa a todos. É sobre o quem vem acontecendo aos nossos irmãos e que certamente poderá ser o nosso destino também”
“Entendi. É sobre o nosso pai?”
Novamente Zeus advertiu com um gesto para que não comentasse a respeito. Poseidon confirmou e murmurou algo.
“Por que tanto silêncio oras?”
“Ele não pode nos ouvir”
“Por que não?”
“Por que entraria em ira se soubesse que estamos tramando contra ele e viria até aqui num piscar de olhos para nos devorar”
“Mas, quanta idiotice. Por que tramaríamos contra ele? Nossa mãe disse que estava tudo nos conformes”
“Você realmente está satisfeito e seguro com as recentes ocorrências?”, perguntou o petulante Zeus.
“Acredito que no fim eu estarei, não me preocupo com isso”
“Pois bem, então viemos até aqui à toa Poseidon”
“Espere Zeus. Hades, apenas me responda uma coisa, o que você fez de útil que poderia orgulhar o nosso pai, senhor do universo?”
Hades abriu a boca para responder de imediato, mas sua voz não saiu. Ele ficou boquiaberto como se tivesse sido petrificado. Tentava encontrar as palavras para convencer os irmãos.
“Vejo que no fim, não está tão certo assim”
“Está bem, vocês venceram. Não ando dormindo nas últimas noites por pensar nos fatos recentes, mas se vamos conspirar, temos que fazer em um local mais discreto”
“Concordamos, sugere algo?”
“Sim, nos subterrâneos, nas entranhas da Terra”
Os três irmãos então desceram os níveis da crosta terrestre, chegando a grutas aquecidas e empestadas pelo cheiro de enxofre.
“Que lugar é esse? Nós entramos por uma montanha, mas nunca imaginei estruturas desse tipo?”
“Eu costumo chamar de Tártaro, mas preciso cavar mais, pois ainda não cheguei ao fim”
Estando em um local escuro, Hades trouxe luz com um fogo flutuante.
“Aqui estamos, comeceis a falar”
“Diante do que nosso pai anda fazendo, acho que temos que enfrenta-lo”, disparou Zeus, com um tom baixo, ainda temendo que tais palavras pudessem ser transportadas além das milhões de toneladas da estrutura rochosa acima deles e chegasse aos ouvidos de Cronos.
“Teríamos que utilizar o elemento surpresa, não podemos invoca-lo e marcar um duelo, seria uma desvantagem para nós”, disse Poseidon.
“Então planeje o engodo”, Hades parecia não ter esperanças.
“Sim, tenho algo em mente. Todavia, tenho que lembra-los que a queda de nosso pai deixará o trono ausente, e o universo não pode ficar sem um comandante”
“Sim, bem lembrado, então temos que definir como será a sucessão”
“Sim Poseidon, eu já deixei a partilha nos seguintes termos: cada um de nós terá um domínio”
“Hum, gostei, mas você já decidiu por nós ou teremos como escolher os domínios?”
“Eu escolhi o que considerei o mais adequado para cada um de nós”
“Baseado em quais critérios?”
“Nas suas próprias vocações”
“Prossiga irmão, estou curioso”
“Você Poseidon, ficará com os mares, todos eles”
“Serei o senhor de todos os mares?”
“Sim, não é você que vive nele, sempre criando peixes e serpentes marinhas? Pois bem, o domínio dos mares será todo seu”
“Hum, minhas suspeitas se confirmam”
“E com o que é que eu fico?”
“Vocês têm que confessar que eu sou um visionário”
Poseidon e Hades entortaram o olhar desconfiados da vaidade do jovem irmão.
“Eu percebi que a demanda por vida humana irá aumentar, será uma coisa natural, eles vão se multiplicar a um número incontável como as estrelas dos céus. E consequentemente a morte os apanhará quando a hora definida pelo destino chegar. E para irá as almas desses mortais?”
Os dois não souberam responder.
“Para o seu domínio Hades”
“Meu domínio?”
“Sim. Será seu o reino dos mortos”
“O meu domínio será o reino dos mortos? E qual a lógica de que as minhas vocações me definem como senhor do reino dos mortos?”
“Ora meu irmão Hades, você não se diz como o definidor do fim? Pois então, é totalmente apropriada a ideia de tal posse, pois somente você poderia dominar o fim da vida dos mortais”
E então Hades pensou melhor, após a justificativa de Zeus a proposta soava melhor.
“Aceito”
“Então vamos aos planos…”
“Espere”, Hades fechou o olhar desconfiado.
“Sim irmão, algum problema?”
“E qual seria o seu domínio?”
“Ah, eu…, bom, eu não sei bem o que seria mais adequado para mim. Gosto de muitas coisas, não sei qual a minha vocação. Nisso, ficarei no trono como líder supremo, pois de lá poderei realizar várias tarefas distintas até encontrar o que seria a minha ocupação definitiva.
Hades e Poseidon se entreolharam, conheciam a prepotência do irmão mais novo, e sabiam que ele ambicionava um poder além do que lhes fora destinados. Mas diante das circunstâncias tiveram que aceitar, discutiriam a sucessão depois. Os domínios oferecidos já estavam de bom tamanho.
E então, os três filhos de Cronos, unidos com o propósito de derrubarem o próprio pai planejaram o grande golpe. Após muita discussão chegaram a uma boa estratégia para o engodo. Ao retornarem para a superfície eles partiram em direções opostas para dar início ao plano.
Cronos deslizava pelas nebulosas. Um ronco explodiu enquanto ele separava pequenos conjuntos de massas para formar satélites em um planeta.
Já não sendo de sua vontade permanecer ali decidiu voltar à Terra para saber do comportamento de algum filho seu.
Por coincidência, assim que pousou seu corpo gigante no solo, Zeus invocou sua presença. A cerimônia além de formal devia ter toda a subordinação explícita. Não podia invocar a presença do senhor do universo sem o devido respeito.
“Olá grande pai, senhor do universo”
“Olá filho, qual a razão de invocar a minha grandiosa presença em tal lugar?”, Cronos percebeu de que estavam em uma praia, próximo da divisão da areia com a maré.
“Eu gostaria de lhe mostrar algo que lhe trará orgulho de sua descendência”
“Hum, e o que seria?”
“Bom, antes de mostrar a você, eu gostaria que deixasse o seu garfo no chão, para que não haja infortúnios e que sua ira seja declarada”
Cronos ficou surpreso com o pedido, mas não desconfiou de nada. Sendo assim, largou o garfo que caiu pesadamente sobre a areia úmida. O garfo se posto de pé teria a altura de Zeus.
Cronos era dez vezes maior do que seus filhos, ele gostava daquela estatura, tinha a consciência de sua grandeza divina e sabia que ela devia ser proporcional materialmente.
“Pois bem, ande logo, mostre-me o que criaste”
“Sim”, Zeus estendeu as suas mãos. Nuvens brancas que estavam dispersas começaram a se acumular.
“Vai criar um dilúvio?”, Indagou Cronos debochadamente.
“Não, algo muito mais potente do que isso”
E então, quando o céu foi coberto por nuvens negras e o dia tornou-se escuro como noite um feixe de luz voou até as mãos de Zeus.
Com as mãos próximas ele conteve a energia e o calor emitido o fez pingar de suor.
“Hum, o que é isso? Um raio?”
“Sim”, Zeus respondeu com esforço, pois conter o raio consumia quase toda a sua energia.
“Essa é a sua grande invenção?”, Cronos não se mostrou perplexo.
“Sim, não gostou?”
“Eu vi bilhões de raios no céu, raios maiores do que a Terra e a luz destes cegariam todos que tivessem a capacidade de enxergá-los”
“Eu levei um bom tempo para fazer isso, pensei que fosse se orgulhar”
“Tempo não importa meu jovem”, o estômago do senhor do universo roncou como se pedisse para finalizar a conversa e que saciasse a grande fome.
“Você fez sozinho?”, indagou Cronos como se a resposta pudesse ser fatal.
“Bom, não, eu tive a ajuda dos Ciclopes”
“Dos gigntes babões de um olho só?”
“Sim, eles mesmos”
“Precisar da ajuda dos Ciclopes para construir algo tão patético. Isso lhe dá o direito de ser classificado como indigno”
“Mas, indigno? De lhe suceder?”
“Exato filho, não merece o trono”, e Cronos se surpreendeu por neste momento, ao invés de surgiu um olhar de terror, Zeus abriu um sorriso demasiado provocador.
“Pois bem. Então o que fará? Me devorar?”
“Garoto arrogante. Merece sim, ser mastigado lentamente até sua carne se desfazer em minha boca”, e então Cronos estendeu a mão para pegar o garfo que havia largado na areia, mas foi surpreendido ao ver que o objeto não se encontrava lá.
Ele voltou a sua atenção para Zeus que ainda concentrava esforço para conter o raio em suas mãos.
“O que está havendo aqui? Onde está o meu garfo?”
Zeus não respondeu. Quando Cronos pensou em partir para cima do jovem, sentiu algo ferir as suas costas. Um arpão atravessou seu corpo.
Ao se virar viu Hades que enlameado havia aparecido da terra.
“Foi você quem pegou meu garfo, jovem tolo?”
“Não, eu só o feri com meu arpão”, respondeu Hades sem demonstrar medo diante do olhar aterrador de seu pai.
E antes que Cronos desse conta, uma onda disparou formando um cone d’água, cuja ponta sobressaltou o seu garfo. O golpe foi tão veloz que o senhor do universo não pôde se defender.
O gigante corpo do supremo deus tinha duas armas fincadas.
Ele não estava acostumado com dores, então realmente ficou perturbado com a situação. Ele viu Poseidon surgir.
“Vocês se uniram para me enfrentar. Que coisa mais desagradável”
Ele cambaleou, caiu de joelhos de frente para Zeus.
“Golpe de misericórdia?”
“Mais ou menos”, e Zeus liberou a força do raio contra o abdome de Cronos.
A potência do golpe comprimiu os órgãos divinos de tal maneira que ele regurgitou todos os filhos devorados que foram restaurados à sua forma original como se nada tivesse acontecido.
Uma fraqueza incomum tornou tudo rodopiante e o senhor do universo caiu ao chão, sentiu frio.
“Vocês não deviam ter feito isso. Meus irmãos, os Titãs, irão me vingar”
“Não, não vão. Nós os derrotamos um a um e cuidamos para que fossem aprisionados”
“O que? Mas como?”
“Não importa como. O que importa é que não haverá uma guerra entre primeira e segunda geração de deuses, poupamos o mundo de algo tão destruidor”
Cronos viu todos os filhos que devorou na praia. Mesmo que conseguisse forças para se levantar não teria como lutar com todos ao mesmo tempo.
Hades retirou de seu corpo o arpão. Poseidon retirou o garfo.
“Vou ficar com isso. Nosso pai o energizou muito e também servirá de lembrança”
Zeus deu de ombros.
Cronos olhou para os três que exibiam sorrisos vitoriosos.
“Filhos de parricida, parricidas são”, apenas murmurou e seu estômago roncou.
O senhor do universo, caído, fraco, humilhado, não encontrou outras palavras e decidiu não lançar maldição sobre seus filhos como fizera o Céu, seu pai.
“Pois bem, qual será o meu fim?”, indagou.
“Isso é tarefa minha”, disse Hades que se aproximou do corpo caído do pai e tocando as suas feridas os dois se desfizeram em nuvens de enxofre desaparecendo dali.
Cronos foi para o Tártaro, juntamente com seus irmãos, os Titãs. E então os seus filhos tomaram posses das criações, cada um com o seu domínio.
No futuro, em outros tempos, em outras ideologias ou mitologias dirão muito sobre a loucura de Cronos. Dirão que os raios são uma lembrança do que houve no dia em que ele fora destronado. E que acordado pelos raios, os roncos de seu estômago explodirão em estrondo indicando uma fome desejando ser saciada. E que ele estaria desejando o seu retorno ao trono enquanto sofre nas entranhas da Terra, pois o tempo não o incomoda. O que sim, é verdade.

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