Por causalidade ou desconhecida intenção, o caracol B-12 alcançou a extremidade marcada por uma faixa vermelha denominada como ponto B sendo o mais rápido dentre os seus antecessores.
Como se ausente de atividade alternativa, sem o mínimo resquício de confrontar as suas vontades, ficou parado sobre a haste de ferro polido, cuja forma cilíndrica distorcia seu reflexo de modo cômico.
Retirado dali, fora colocado na caixa de vidro junto com seus parceiros de vivência em cativeiro.
“E ae chapas, de volta na área”, disse em seu tom juvenil.
“Olhe só, ele já voltou”, disse B-07.
“Então é ele”, ponderou quase que para si mesmo B-04.
“Verdade, considerando a meticulosidade dos de Branco, é ele”, concordou B-03.
“O que sou? Que meticulosidade dos de Branco? Do que estão a falar seus cabeça de molusco”
“Você não presta atenção nas coisas, B-12? Não ouviu a conversa de ontem?”
B-12 desconsiderou o fato de que um caracol não possuía a audição como sentido básico, mas preferiu não entrar no mérito da discussão, até porque havia inexplicáveis razões que permitiam a comunicação necessária entre os de sua espécie, e palavras como “ouvir” era uma liberdade de expressão aceita por aqueles que viviam naquele laboratório.
“A meticulosidade dos de Branco é peça fundamental de nossas especulações. Os de Branco não tardariam em retirá-lo da Caixa Olímpica e depositá-lo aqui novamente. O que nos leva a concluir que você é de fato o mais rápido de todos”
“Mais rápido? Mais rápido de todos? Mais rápido em relação ao quê afinal?”
“Em deslocamento, ora, ele nem sabia qual era a competição”, queixou-se B-05.
“Competição? Era uma competição?”
“Santa lerdeza B-12! Acorde! Você não desconfiou da sua existência aqui nesse laboratório?”, indagou nervoso B-01, o mais velho do grupo.
“Sim, mas o que as questões filosóficas têm a ver com a competição de velocidade?”
“Com essa mente em marcha lenta e ele é o mais rápido de todos, como pode isso?”, B-09 trazia em sua voz um misto de uma risada abafada e fracasso emocional. “Você também não questionou os métodos utilizados? Não estranhou que fugiam ao padrão?”
“Um pouco, mas não me incomodei com isso, sabe, sempre soube que nosso propósito era sermos analisados em experimentos variados, mas prefiro pelas mãos dos de Branco, em suas meticulosidades, como vocês chamam, do que ser experimento de um garotinho rechonchudo a brincar no jardim da casa da avó enquanto joga sal sobre nosso frágil corpo. Até a palavra sal aqui é menos chocante, nem parece que Cloreto de Sódio pode nos matar”
“E ainda sou obrigado a ouvir isso, B-12, você não merecia isso”, B-09 afundou para dentro de sua concha.
“Hum, estou vendo aqui”, disse B-01 retesando suas antenas maiores ao ponto de deixar seus olhos grudados no vidro da caixa. “Vejo no tablet do pupilo de Branco, há uma tabela com os dados. O título é: O caracol mais rápido do mundo. Você B-12 é 16.2 segundos mais rápido do que B-23, portanto, um vencedor de impressionante marca ”
Por mais que tenha se esforçado a ocultar a satisfação própria, B-12 notou que seus companheiros já aguardavam certa animosidade de sua parte. Sendo assim, decidiu não encenar uma falsa modéstia e disparou, em sua velocidade observada como a mais rápida do mundo dentre os da sua espécie até o vidro da caixa. B-01 afastou-se e ficou a observar B-12 quase se esborrachar na superfície de aspecto quase onírico, de material invisível quando visto distante, mas que refratava todas as luzes quando se colava os olhos nela.
“Ei!”, gritou B-12.
Os de Branco estavam a brindar o resultado, ou pelo menos, era o que os caracóis julgavam estar fazendo. Com a preocupação e zelo por não sujarem seus jalecos impecavelmente brancos de mostarda escura quase não notaram o vencedor avulso ao grupo e grudado no vidro do cubículo de descanso.
Quando o notaram aproximaram-se para observá-lo.
“Ei! Vocês… de Branco”, B-12 gritava, desesperado em ser notado. “Olha, aqui…, err, eu não sabia que era uma competição, no duro. Sério mesmo, não fazia a mínima ideia”, decidiu evitar o preambular comum que deveria ser um agradecimento ou início de discurso da vitória. Tomado por uma sensação nunca antes experimentada, sua voz escapava pelo orifício bocal ao lado do genital quase que por impulso próprio, exalando uma ansiedade que transparecia seu orgulho, prepotência e arrogância.
“Não sabia que estava competindo com os outros, sério mesmo”, continuou, agora fitando os olhos dos cientistas que observavam enquanto mordiscavam seus sanduíches de atum. “Se eu soubesse, rá, meus chapas, eu teria sido mais rápido, talvez 0.7 segundos ou quem sabe até 0.9. Sério mesmo, sou mais rápido do que isso, vocês não têm ideia. Aquilo foi moleza para mim. Eu sou muito mais do que testemunharam, o meu potencial está além de todas as regras da natureza, esses meus comparsas podem não acreditar, mas acho que vocês compreendem, não é?”
B-12 continuou a discorrer sobre a sua habilidade sem se preocupar com o tom grotesco que suas palavras poderiam adquirir, afinal, ele podia se engrandecer, não? Ele podia reconhecer que era o melhor, não?
O que ele via era o semblante curioso dos cientistas a observá-lo tornou-se uma imagem congelada no tempo, não cessou suas palavras entremeando-se de sinônimos e inflando seu ego com metáforas e eufemismos.
Mas, os cientistas não se importavam com o potencial máximo não alcançado do caracol, muito menos do que ele estava a gritar naquele momento.
O que complicava era que a B-12 não importava se eles estavam de fato interessados no que dizia, pois já havia pré-concebido essa ideia.
O que sobrava em uma análise mais externa era a conclusão de como a natureza era generosa. Pois, o caracol tinha a liberdade de expressão, mas a quem importava o que dizia? Os cientistas não se importavam com a sua necessidade de de se expressar, tão menos seus companheiros de cativeiro. Porém, a generosidade da natureza não era de impedir a comunicação entre as duas raças num manto de sufocamento da liberdade de expressão, mas sim, e também, na do direito do caracol poder se vangloriar em seu pedestal da vitória por um título merecido e não sair vaiado por um público exigente ou se tornar um novo motivo de chacota.