Entre centenas de existências que se expandem universo afora, além de outras que se encaixam entre os paralelos, uma em particular se desfigurava em sua rotina.
Os seres dominantes carregavam o duro fardo e vazio da existência.
Se cotavam muitas poesias terríveis, trágicas, belas e contraditórias acerca da fragilidade desses seres dominantes.
Em poucos milênios desenvolveram seus corpos moles, voláteis, que se expandiam a um nível tal qual podiam atravessar uns aos outros sem pudor. Um salto considerável na evolução e então acordaram mais rígidos, com corpos que atendiam às regras da gravidade, dos fatores climáticos, da durabilidade material.
Mas o padrão evolutivo não se tornou escalar. Estagnaram na forma rígida e no transcorrer de milhões de anos viram apenas as civilizações desabrocharem e fenecerem.
A fragilidade foi notada logo após a última fase evolutiva.
Uma morte súbita, sem aviso, colhia tais seres em um ritmo incalculável.
Um trabalhador retornando de um dia árduo, carregando sua valise com contas e apólices… cai sem vida no meio da calçada. De seu corpo rígido um orifício surge e uma fumaça fina escapa como uma alma livre de sua prisão material. Os demais transeuntes olham, se chocam por poucos segundos, até perceberem que é a morte mais comum do mundo. O corpo é retirado e levado para as devidas formalidades funerárias.
Tal morte nunca foi compreendida. Acontece a qualquer indivíduo.
Grande, pequeno, belo, feio, bom, mau, alegre, triste, prospero, miserável, jovem ou velho.
Uma dançarina num espetáculo, ploft. Cai sem vida.
Um bebê recém-nascido, trincando a casca materna, sffff, a fumaça é cuspida quase sem folego.
Um atleta num campeonato mundial, a bater o recorde, brump. A violência da queda na pista não foi a determinante, os espectadores já imaginavam o que o fez perder.
Tais seres não eram imortais, morriam em choques de aeromóveis, em tragédias geológicas, de velhice, de pestes variadas.
Mas a morte súbita não era compreendida, estudos tentavam apontar algum padrão, encontrar algum ativador, algum motivo que pudesse ser contornado.
Nada, milênios e milênios transcorreram e nem mesmo um panorama estatístico pôde ser apontado.
Dormindo no quarto confortável, o marido nem se contorce, a fumaça é expelida umedecendo parcialmente a fronha.
O médico a consultar a criança com os membros raspados por alguma alergia, um gemido fraco, que se perde em meio à queda lenta.
A caixa do banco não completa a digitação do protocolo.
Leves suspiros das testemunhas, mas a vida continua.
Próximo a uma praia, um casal de jovens sentados num banco observavam o desfile de seres aquáticos que insistiam em quebrar a monotonia do mar cinéreo.
“E se fossemos dez vezes mais resistentes?”, indagou a menina com a cabeça sobre o colo do namorado.
“Acha que surtiria alguma diferença em nossa consciência?”, indagou o namorado.
“Cem vezes?”
“Não creio”
“Então mil”
“Duvido muito”
“Fala como se nunca se importasse, não sentisse a nossa vida frágil”
“Não hoje. Talvez eu não esteja no meu dia”
“Mas mesmo quando forço a questão tem uma resposta rápida, indiferente, fria”
“Levo em consideração a questão da relatividade, simples assim”
“Não importa a nossa resistência, sempre estaríamos sujeitos à uma fragilidade?”
“Acho que para ter noção dessa resistência, força ou seja lá o que você chamaria, teríamos que ter em paralelo a consciência da perda. Não é essa sensação que torna tudo mais empolgante de ser vivido?”
“Sim, mas seria bom se tivéssemos ao menos um certo controle”
“Nascemos sem pedir e morremos sem querer, é verdade. Mas esse meio já é o suficiente para nos esgotarmos de momentos”
Entre afagos e carícias, entraram em consenso, assim como milhões de seus semelhantes, que todos os dias adotavam a conclusão mais digna. E criavam poesias, romances, tragédias, comédias, reflexões, citações…
Não antes, é claro, de se sensibilizarem com o fato.