“Tem que ser Dema”, dizia o gordo. Ele se referia ao nome do coquetel que estávamos prestes a inventar.
“Por que Dema? o que quer dizer?”, perguntou o mais inteligente.
“Dema de gema? Vai gema nisso?”, indagou o mais bobo, porém, mais fiel.
“Não saquei”, disse o cabeludo.
“Também não entendi”, esse sou eu compartilhando a dúvida de todos.
“Dema é a mulher do demônio. Nossa amante. Sacaram?”, justificou o gordo.
“Que lixo velho”, o mais inteligente arrumava as coisas para preparar a bebida.
“E aí, vai ser Dema mesmo?”, o mais bobo estava curioso.
“Por mim tudo bem, não tenho outro nome em mente”, na verdade eu não ligava muito.
Todos nós estávamos na casa dos catorze anos. Todos órfãos de pai.
Era uma época que transpirava rebeldia. Tudo era motivo de sermos rebeldes á maneira de garotos com catorze anos.
Começamos a fumar, saímos ás ruas praticando anarquias como dar voadoras nas lixeiras de ferro e deixa-las retorcidas, lançar nossos chinelos ou tênis contra os semáforos e trocar placas de “Aluga” e “Vende” das casas.
Muitas coisas que na época não nos fazia sentir envergonhados. Muito pelo contrário.
Toda vez que topávamos com outro grupo tínhamos que impor respeito.
Na maioria das vezes esse respeito custava um supercílio rasgado e muito sangue nas camisetas.
Naquele dia decidimos ficar na casa do cabeludo, já que sua mãe viajava.
E como o ócio parecia rir de nossas caras, resolvemos inovar.
E enquanto na televisão campeonatos de luta livre eram exibidos nós preparávamos o nosso coquetel.
“Dema, Dema, Dema”, o mais gordo tragava o seu cigarro e cuspia a fumaça como um mafioso exibindo sua superioridade aos capangas.
Ele jogou as cinzas na jarra de vidro.
“Vai ficar lindo isso”, o mais inteligente estava empolgado, parecia que usaríamos algum tipo de droga que nos faria ter alucinações e nos levasse a outros mundos.
“Joga isso também”, o cabeludo jogou um pouco de macarronada passada na jarra.
“De quando é isso?”, perguntei, incrédulo.
“Semana passada, antes de minha mãe viajar”
Jogamos as bitucas de cigarro também. Mostarda, maionese, refrigerante, um gafanhoto morto preso no véu da cortina da sala, pimenta, queijo gorgonzola, óleo de frigideira, dois ovos crus, uísque, vodka e um pouco de uma pinga de quinta categoria.
Tampando a jarra, agitamos o conteúdo mutante.
Foi uma época que queríamos explorar todo tipo de experiência politicamente incorreta.
Até hoje fico imaginando o que se passava na minha cabeça.
Anos mais tarde vi uma cena de um filme americano. Era sobre loucuras de uns jovens, na verdade eram adultos já. Eles faziam todo tipo de loucura possível e se colocavam como voluntários no que parecia ser um filme de dublês para cenas sem propósito.
O rapaz pegou um funil e uma mangueira, encaixou os dois e olhando para a câmera diz: “Me desculpe pai” e em seguida coloca a outra ponta na mangueira na bunda. Os amigos enchem o funil com cerveja para que ele bebesse pelo anus.
O engraçado disso foi a consciência dele pesar e já se desculpar ao pai.
Nós não tínhamos essa consciência.
Mas acho que cada um guardava uma paranóia para si.
Eu por exemplo, acreditava que os espíritos passados davam suas espiadas de vez em quando para ver como eu me comportava. Meu pai, avô, bisavô, tataravô e assim por diante. É lógico que eles sempre se decepcionavam e depois deviam procurar por um dos meus primos, que eram menos insanos.
Procurei razões que justificassem as nossas ações. Vazio de uma figura paterna?
Não sei. Acho que aquilo foi apenas uma desculpa para minimizar as nossas responsabilidades ao nos colocar como vítimas.
“Quem vomitar vai beber de volta”, disse o mais inteligente.
De todas as conclusões possíveis nenhuma satisfaz a minha dúvida.
Nossas mães diziam que era apenas uma fase. E de fato, estavam certas.
Mas vimos muitos se levarem nessa fase.
Queria realmente poder entender aquela coragem.
Coragem de beber um coquetel daquele e não sentir vontade de vomitar.
“Vamos, só falta você”, disse o mais bobo com os olhos marejados e com uma careta.
Eu segurava o copo e tinha o olhar perdido.
“O que foi?”, perguntaram.
Eu não ia desistir. Apenas realizava uma cerimônia.
E o coquetel desceu, um cheiro anormal e um ardido fizeram os meus olhos lacrimejarem. Exageramos na pimenta.
Ao terminar, apenas pensei: “Me desculpe pai, avô, bisavô, tataravô…”