Foi difícil dar crédito ao trailer de Até o Último Homem (Hacksaw Ridge), achei que seria uma história religiosa cafona, principalmente quando o diretor é nada menos que Mel Gibson, que se envolveu em diversas polêmicas por suas ofensas antissemitas e racistas, inclusive depois de ter dirigido A Paixão de Cristo (The Passion of the Christ), e todo o seu problema com o alcoolismo que impediu que ele fizesse uma ponta em Mad Max – Estrada da Fúria (Mad Max Fury Road) o que desfaz qualquer tentativa dele em parecer um bom cristão.
Mas quando fui introduzido ao filme, que tem Andrew Garfield como o protagonista de uma história de guerra real, percebi que essa é uma verdadeira obra realizada por quem dirigiu o épico Coração Valente (Brave Heart).
Há uma quebra na história semelhante ao memorável Nascido para Matar (Fullmetal Jacket) do Stanley Kubrick, em que a primeira metade se passa no camping de treinamento com um sargento durão compelindo os novatos a duros exercícios e ensinamentos de conduta e a outra em campo de batalha com os soldados a encarar a realidade de uma guerra em que o inimigo parece lutar de forma mais empenhada e embasada em sua ideologia.
No entanto, a diferença nesse filme é que o personagem principal, Desmond Doss, é adventista do sétimo dia e um Objetor da Consciência, fato que torna tudo mais interessante porque ele recusa portar uma arma durante o conflito.
A recusa causa indignação entre os colegas e superiores de farda. Quando questionado, Desmond diz que quer salvar vidas e não tirá-las, e seu alistamento não era para ser um fuzileiro e sim médico da tropa.
Há todo um processo de julgamento por indisciplina e insubordinação que mostra que tal pensamento mezzo religioso mezzo humanista não poderia ter lugar no exército do país que estaria a se tornar a maior potência mundial.
Esse não é o único empecilho na vida de Desmond, os problemas familiares não são ausentes quando se tem um pai alcoólatra que sofre com os traumas da Primeira Guerra mundial e que sempre foi violento para com ele e o irmão, e o fato de tal homem ser interpretado por ninguém menos que Hugo Weaving deixa alguns momentos memoráveis, como a cena em que o filho mais velho chega na mesa de jantar com um uniforme militar e o pai comenta sobre o amigo que adorava o uniforme e que levou o tiro pelas costas de modo que o sangue e as vísceras o sujaram, no fim, deseja que o filho levasse um tiro pela frente.
Há momentos cômicos, como por exemplo o romance que Desmond desenvolve com a enfermeira Dorothy (Teresa Palmer), tudo na inocência da época e aceitável pelo comportamento do personagem.
Os momentos de tensão chegam quando os soldados vão para a batalha, sendo um ponto de suma importância para que os EUA pudessem vencer a nação do sol nascente: Okinawa. Para quem assistiu a série The Pacific, ou simplesmente estudou a fundo sobre a Segunda Guerra, sabe o quão difícil foi vencer os japoneses lá.
Entre rajadas de tiros e um ambiente mortal que era localizado no alto de um desfiladeiro, não são ataques certeiros que fulgura o heroísmo de Desmond, mas sim seu desempenho em cumprir em que sempre acreditou: não matar.
E seus salvamentos sem nem mesmo tocar em uma arma garantem o filme naquele lugar no meu coração, tanto que muito lembrei de Gandhi, naquele filme em quem o interpreta é ninguém menos que Ben Kingsley. Onde a crença na não violência supera o mundo e seu estado de eternos conflitos.
Não sou mais religioso, mas em tempos de Bolsonaro e alguns indivíduos que querem armar a população (justificando com passagens da bíblia…) e invocam a pena de morte, só consigo pensar num dos mandamentos mais importantes e que sempre teve peso em minhas reflexões:
Não matarás!
Ma’a salama