No início era sem forma e sem vida. A energia não seria transformada em mecânica, ficaria imutável, naquele estado mental. Não era apenas pensamento, estava no meio das frentes racionais e emocionais. Para nascer, aguardava seu criador entrar no estado de relaxamento profundo, em que nada pudesse atrapalhar sua noite de sono.
Geralmente, os pesadelos nascem rápidos, como tragédias na vida real. Mas aquele era diferente. Ele já compreendia que seu nascimento seria algo que tivesse que ter paciência para ter forma e vida.
Quando a noção do tempo surgiu, ele sabia. Havia nascido para cumprir com a sua sina.
O ambiente era formado por uma avenida, movimentada, com um trânsito caótico. Mas não havia som.
Ao longe, apareceu alguém numa moto. Ele parecia simples, mas se destacava de todo o resto.
O pesadelo sabia que ele era o seu deus. O único momento em que o seu criador se redimia. E esse tempo era a sua vida inteira.
A moto parou. O rapaz que a dirigia olhou aterrorizado diretamente para ele. Sabendo a que forma tomar ele avançou contra o rapaz, que por um instinto sub-consciente resolveu fugir passando por cima dos carros.
Sua moto subia nos automóveis de forma ilógica, mas isso não foi problema para o pesadelo. Ele recebia ordens de um vácuo, em seus poucos segundos de existência já sabia que era subordinado de vários pontos de luz que se chocavam vindos de uma massa cinzenta que repousava.
A forma que o pesadelo tomou era a de um caminhão que capotava com violência, indo de encontro à sua presa que fugia desenfreadamente. Os únicos sons agora eram dos obstáculos sendo esmagados nessa caçada.
O rapaz parou em frente á um ônibus. Olhando o mostrador soube que a gasolina acabou e que sua moto não poderia mais fugir. O caminhão se aproximava. Se pegasse o rapaz teria vencido, mas sua missão teria acabado, e sua existência se daria como encerrada. Nesse caso, o pesadelo pensou em dar um acréscimo ao rapaz, e a si mesmo.
Jogando a moto de lado e tirando o capacete, o rapaz sabia que seria o seu fim. Então começou a suar frio. E isso lhe deu uma saída. Seu suor formou uma poça e como se estivesse viva o envolveu fazendo-o afundar para um oceano aberrático.
O pesadelo sentiu que entrara em nova fase e mudou a sua forma. Seu corpo de metal amoleceu ao ponto de ganhar vida simbólica. Ele se tornou um predador marítimo que se prezasse. O rapaz viu sua roupa mudar para um branco sem sentido. E um estranho sangue se dissolvia na água salgada. Correndo seus olhos até seu braço viu que havia um risco, sendo este, o ponto de origem do sangue. Voltando seu olhar perplexo ao monstro marinho viu suas narinas sugarem o cheiro do seu sangue tipo B Positivo. O ser que parecia uma mistura de baleia, tubarão e lula gigante abriu uma boca que engoliria a lanchonete onde ele comia no horário de almoço de seu humilde emprego.
Mas o seu pavor passou, não sabia ao certo o porquê. Talvez fosse porque novamente o silêncio reinava no ambiente. Talvez fosse porque não sentia que estava sendo afogado. Mas na verdade seu medo desapareceu porque o fato de pensar na lanchonete cabendo na boca do predador fez um sanduíche aparecer na sua mão onde o sangue virou tempero.
E em seguida uma âncora vinda do Ao-Nada-Mais-Além parou ao seu lado com um solavanco, nela vinha algo inscrito. O rapaz fez força para ler. “Tem Preço”. Ele não se importou. Afinal, tudo tinha um preço naqueles tempos e a salvação não dava o direito de ser negociada. Ele agarrou a ela.
O mostro marinho o viu sendo puxado para fora da água sorrindo com o sanduíche na mão. Abrindo a sua boca e correndo atrás dele para abocanhá-lo sentiu sua percepção mudar. Ele passou a ver através dos olhos do rapaz. Os olhos do sonhador, ele era o rapaz que agora fugia numa âncora e via uma boca de um peixe grande aberta ao máximo, mostrando dentes afiados, uma língua sedenta por sangue, e no final quase escuro, algo brilhava levemente. Um zíper.
O rapaz riu ao emergir. O pesadelo sentiu algo diferente. Não era a sensação de mudar de forma, mas sim algo que o alertava. Não era para ser daquela forma. Um pesadelo ás vezes podia se dar ao luxo de ser sarcástico. Porém, teria que reagir com a violência quando fosse ameaçado de ser transformado num sonho bom. Nisso, o pesadelo compreendeu a necessidade de tomar a posição do olhar do sonhador. Deveria criticar suas próprias formas e atitudes e mudar a sua estratégia.
O rapaz sentiu o mundo a que fora trazido ser transformado. Tudo ao redor foi envolvido por uma luz forte, que o fez deitar, sentindo uma dor grande. E aos poucos ele entendeu a razão do branco de sua nova roupa. Ele estava numa maca, vários falsos médicos tentavam inutilmente reanimá-lo. As enfermeiras estagiárias pareciam estar zombando dele.
“Aplique mais anestesia nele”, disse um tirando as mãos ensangüentadas de sua caixa torácica.
A enfermeira disse que acabou. Havia aplicado tudo nos pais dele.
“Cadê o bisturi?”, perguntou outro médico que também deixou dentro do corpo dele duas seringas, cinco parafusos e o apagador da professora de matemática que ele roubou há muito tempo. Isso tudo provocou uma hemorragia e aumentou o sangramento de seu braço.
Um som contínuo o fez gelar. Sabia que algo estava errado.
“Posso ficar com isso?”, perguntou uma enfermeira, e recebendo uma confirmação de uma ex-namorada, o rapaz a viu arrancar uma coisa no meio de suas pernas.
O som contínuo se tornou uma música, tocada por um bicho usando capuz preto e que trocaria sua moto por um sanduíche caído no chão da sala cirúrgica.
“E então?”, um médico parecia confuso.
O rapaz sentia grande dor.
“Acho que morreu”, disse o outro que usava um óculos trincado e sujo.
Ele ainda sentia grande dor. Não podia estar morto.
“Bom, então, acho que é a hora do almoço. Eu pago hoje.”, disse um outro que surgiu do nada e tinha muito sangue nas suas luvas.
O pesadelo queria poder rir. Aquilo sim, era algo que merecia crédito. O sarcasmo sob seu controle. Tudo graças ao fato de estar observando através do olhar do rapaz. Mas a dor, também era sentida.
O rapaz ficou ali por muito tempo, até que a maca quebrou e deixou seu corpo deslizar, atravessando o chão por um buraco escuro e levá-lo por um túnel até parar num caixão.
A dor passou. A luz forte se transformou num véu fraco que ocultava os rostos dos que podiam ser seus conhecidos. Seu capacete estava sendo segurado por alguém, e o objeto sem vida murmurou algo:
“Tão jovem”
Um pouco de dor fez os lábios do rapaz realizarem o movimento para que as palavras “Estou vivo” saíssem, mas o som de um avião passou acima e ninguém o ouviu.
O pesadelo amadureceu, seus instintos primitivos se tornaram parâmetros de uma idéia. Ele seria sarcástico somente porque o rapaz riu momentos atrás.
Novamente o rapaz tentou alertar a sua condição. No entanto, uma explosão ao longe fez todos voltarem a atenção para outro lado. Ninguém o ouviu.
Uma dor maior o fez tentar novamente. Mas um satélite caiu na rua onde era realizado o seu velório. Todos foram ver.
“Como eu vou ver o final da minha novela”, berrou a sua bisavó que morreu há trinta e dois anos.
“Novela? E a final da Copa?”, berrou inconformado o dono do bar em que o rapaz tinha dívida pendente.
Ninguém voltou. Todos estavam surpresos demais com a queda do satélite que enviava sinais para sintonizar os principais canais de televisão.
O rapaz nem tentou gritar mais. Não sentia mais dor. Apenas uma tristeza da qual não conseguia escapar o dominava.
Seu caixão fora vedado. Enterraram-no numa vala comum. E conforme passou o tempo os vermes apareceram para fazer a famosa “companhia”.
“Tá faltando alguma coisa aqui”, disse um verme no meio de suas pernas. As dores voltaram, mas eram menores.
O pesadelo passou a sentir certo prazer. Sabia que essa era a melhor fase de sua existência. Permaneceria no olhar do sonhador.
Quando os vermes se saciaram foram embora sem agradecer ou dizer adeus. O rapaz sentia vontade de gritar, mas não tinha mais cordas vocais. O silêncio era agonizante.
O pesadelo se dividiu, sendo que, uma parte permaneceria no olhar e outra tomasse forma. Alguém arrombou o seu túmulo. Eram ladrões atrás de jóias.
“Esse merda não tem nada”, disse um que parecia seu irmão.
“Nada mesmo”, disse outro vendo que só havia ossos. Esse lembrava seu melhor amigo.
Os dois deixaram seu esqueleto cair no chão e sumiram na escuridão do cemitério.
O rapaz sentiu vontade de chorar quando uma sensação ruim lhe veio. Parecia que a lembrança de sua vida real estava viva, e ele se via como um inútil.
Ele se levantou sem saber como. O pesadelo gostava de tomar conta das atitudes de seu criador. Ficou andando na escuridão sem destino, até que alguém o abordou. Era um velho carrancudo com uma pá nas mãos.
Ele resmungava, mas nada era ouvido. O pesadelo manobrava o silêncio como o instrumento ideal da tortura.
O velho o agarrou e o arrastou.
“Se eu fosse deputado estaria dormindo agora e as minhas férias seriam maiores”, resmungou por fim o coveiro e jogou o que restou do rapaz numa fornalha.
O calor que sentia começou devagar e quando ele percebeu o fogo lambia seus ossos como se fosse a ração predileta de um cachorro faminto.
O rapaz flutuava. Seu corpo havia se transformado numa fumaça preta. Seu olhar ainda existia, mas nenhum outro sentido parecia viver.
O pesadelo o guiava em forma de vento para onde pudesse ver seus conhecidos.
O rapaz viu abaixo alguns amigos gritando algo com raiva para ele. Não fazia idéia do que diziam, mas pareciam estar xingando-o, e isso o aborreceu.
Seu patrão também estava embaixo e o demitia.
As mulheres que ele beijara antes também lá embaixo não notavam sua ausência. Isso o aborreceu.
Não encontrou mais conhecidos.
O pesadelo deixou de ser uma brisa e virou uma ventania que levou a fumaça para longe, foram sendo envolvidos por uma escuridão.
E de repente, o pesadelo percebeu que sua vida estava se prolongando demais.
Ao longe, na escuridão uma fenda de luz, bem fraca, foi aumentando lentamente, dissipando a escuridão.
Ele soube que era o seu fim. Sua missão fora completada. A escuridão que sumia era sugada por um vácuo que se juntava a uma corrente de luz. Ele foi chamado para essa corrente. Sabia que era o fim de sua existência. Agora, a sua energia original se tornaria apenas um conjunto de informações que seriam vivenciados brevemente no momento desperto do rapaz, sendo somente uma lembrança de um pesadelo estranho.
Mas antes de morrer o pesadelo tinha que ter um nome. E era ele quem escolhia. Tinha que ter um nome para atender ao chamado quando o rapaz quisesse se lembrar dele.
Numa confusão desesperada ele tentou buscar algo nos cenários criados. Não queria ter o nome como de um pesadelo antigo chamado Fogo Na Casa Toda.
Não. Ele queria ter um nome de peso. Peso! O pesadelo associou a palavra á âncora e lembrou da inscrição. Perfeito.
Seu nome seria Tem Preço. Era curto e emblemático.
A fenda aumentou tanto que a escuridão desapareceu por completo.
O rapaz via agora o seu quarto iluminado pela luz que vinha da janela aberta.
Estava quase na hora de acordar para ir para o trabalho, então decidiu se levantar da cama. Quando tentou se lembrar do sonho inteiro lhe veio à mente uma âncora que estava escrito algo. Ele riu, não se lembrou das dores ou da tristeza. Elas viriam depois em outro momento, quando sua vida se perdesse alguns sentidos.
“Ás vezes eu sonho coisas estranhas demais”, murmurou para si mesmo.