O Melhor de 2023

Findo 2023.
Triste final de ano para a minha terra (sou palestino nascido em Jerusalém, para quem não sabe), acometida no último trimestre por um evento violento, com práticas genocidárias aos olhos do mundo (no ataque e na represália), em tempo real e com a atmosfera da impotência a depreciar a alma dia a dia.
Para quem segue o site aqui, já sabe que posto somente as melhores coisas, ou boas.
Mas o bloco que inicio, que é o de leituras vai para um livro importante para tudo o que está acontecendo:
Meu Nome é Adam, de Elias Khoury.
O livro é uma reconstrução da memória do Adam do título, nascido na Nakba (catástrofe palestina), e perpassa o massacre de Lidd, um dos muitos vilarejos que sofreram extermínio no início da ocupação israelense.
Muitas histórias de 1948 foram caladas por décadas, ocultas em narrativas que lutam para ganhar luz.
E esse romance é triste e belo em retratar essa memória de dor, de luta e esperança.
Tradução de Safa Jubran.

Meu Nome é Adam
Meu Nome é Adam



Onde Pastam os Minotauros, de Joca Reiners Terron.
Um abatedouro de bois especializado em halal (selo acordado de práticas ligadas à lei islâmica) no interior do Mato Grosso, com fábula do minotauro pelo ponto de vista dos bois e minotauros. Há palestinos em um paratexto intercalado com outros paralelos, seja na matança pelo consumo amparado pelo capitalismo sanguinolento, seja pelos labirintos das noções que temos de nossos meios para sobreviver na esperança de um dia o mundo ser um lugar mais… justo.

Roxo, de Andréa Berriell.
Fazia tempo que não lia um romance policial tão bom. E não é somente um romance policial, é uma narrativa envolvente que segundo muita gente comentou nas redes: “Daria uma bela temporada de True Detective”.
Andréa Berriell transita entre passado e presente na trama com ótimas referências textuais e visuais que vão além da cor título.

Vou Sumir Quando a Vela se Apagar, de Diogo Bercito.
Yacub e seu melhor amigo Butrus trabalham numa vila precária e rural síria.
Há a saga de um jovem sírio que vem ao Brasil dos anos 1930. Algo que me fez refletir sobre as vivências de meu avô mascate que veio da Palestina para as terras brasileiras em décadas posteriores a da história, mas que provavelmente com muitos pontos a se imaginar sobre choques culturais.
É uma história sobre amor, tragédia, distância e escolhas, muitas escolhas.
Escolhas essas que são como um dedo a passar rente a chama de uma vela, transitando em dualismos, seja no Oriente-Ocidente, Real-Fantástico, Vou-Fico, Aceitação-Culpa.
E tem um Jinn no meio de tudo isso.


Corpo Desfeito, de Jarid Arraes.
É com uma técnica invejosa que Jarid conta a história de Amanda, que sofre pelas mãos de quem deveria ser seu porto seguro. Leitura que flui com uma facilidade sem perder o charme, fez um homem barbudo relembrar a atmosfera dos anos 90 e empatia por uma personagem sofrida.


Mil Placebos, de Matheus Borges.
A internet, ah, a internet. O que há na internet, e em nós mesmos nessa era multiconectada?
Mil Placebos é uma ficção científica, não somente do nível “Tudo tá sendo FC agora”, mais ou menos como a epígrafe de JG Ballard que tá no começo do livro.
Mil Placebos é do tipo de livro que acho melhor a pessoa se arriscar a ler sem saber muito, sem ler a sinopse e ir somente no “vai que é sucesso”.
Ah, aparece um palestino lá pelo meio.

A Telepatia Nacional, de Roque Larraquy.
O argentino Roque Larraquy é engenhoso no trato que dá ao mostrar o tráfico de indígenas para o projeto de um parque etnográfico, ou zoológico humano, na Buenos Aires dos anos 1930.
E para que o absurdo não pare aí, há um objeto trazido pelos indígenas que possibilita um evento telepático.
E tem um senso de humor de um nível que não esperava da terra dos hermanos.
Tradução de Sérgio Karam.


Das séries que tiveram suas últimas temporadas, vou sentir muito a falta de Succession.
E também de How To With John Wilson.
Velho demais para Morrer Jovem (Too Old To Die Young) foi uma surpresa caçada, dirigida pelo dinamarquês Nicolas Winding Refn. Pesado.
Algo leve e que garante boas risadas é Na Mira do Júri (The Jury Duty), em que há toda uma estrutura de tribunal e julgamento encenada para enganar apenas uma pessoa que pensa que tudo é real oficial.
Planeta dos Abutres (Scavengers Reign) é uma série animada que mostra um grupo de trabalhadores espaciais “naufragados” em um planeta inóspito, com uma natureza tão mortal quanto bela. Ao que parece é a melhor coisa que a HBO (ou Max) lançou de novidade nesse ano.
Corpos (Bodies), foi uma minissérie bacaninha de ficção-científica envolvendo viagem no tempo.

Esse ano foi o que parei para assistir a uma indicação que um amigo fez na faculdade 15 anos atrás. E então assisti o anime Monster do criador Naoki Urasawa. Achei genial.
E fui pego de surpresa quando a Netflix lançou Pluto, outro anime de Naoki Urasawa. Uma minissérie que mostra um futuro em que humanos e robôs convivem com leis regendo suas vivências. A trama aborda as discussões que lembram Blade Runner, mas focando em um drama que vai ter paralelos com acontecimentos do mundo real (Guerra do Iraque pelas mentiras criadas pelos EUA) com o universo especulativo de lá (Guerra do Reino da Pérsia pelas mentiras criadas pelos Estados Unidos da Trácia).

Mas a série campeã foi Treta (Beef).
Um desentendimento no estacionamento acaba gerando um ódio entre Amy (Ali Wong) e Danny (Steven Yeun) que percorre os 10 episódios que vão além de uma perseguição de gato e rato. Falar mais que isso é entregar spoilers irresponsáveis. Ainda bem que não dirijo, e tenho a terapia (self-med-abs) em dia.


De HQs pouco consumi. Mas As Muitas Mortes de Laila Star, de Ram V, foi a melhor aquisição e leitura.
O desenlace da deusa da morte do hinduísmo ser demitida após o nascimento do deus que viria a inventar a imortalidade, e as reencarnações dessa demitida tentando se recolocar no mercado de trabalho com a tentativa de impedir que a pessoa nunca invente a tal da imortalidade, tudo é feito com uma sensibilidade, com homenagem cultural, e com cores e traços muito fodas que não via há tempos.



Se teve um documentário que merece respeito e é uma obra de noção da memória e da preservação da arte é Retratos Fantasmas de Kléber Mendonça Filho.
Tem a visão pessoal e intimista sobre o uso da casa que sua mãe construiu como cenário de suas produções. Tem mapas nostálgicos de uma Recife mágica onde povoa uma cultura incessante. Tem um projetista que enjoou de O Poderoso Chefão (The Godfather) e viu vantagem quando fardados da ditadura chegaram para encerrar o cinema: “é bom que vou largar mais cedo”.
Ah, e tem um cabra que fica invisível.
Uma pena que a Academia do Oscar não o considerou como indicado.




Todo um auê por Barbie e Oppenheimer que uniu a internet para infinitos memes, e sim, os filmes são bons, mas também superestimados diante de todo esse auê.
Os meus favoritos desse ano:
Piscina Infinita (Infinity Pool), dirigido por Brandon Cronenberg (sim, filho daquele Cronenberg), que tem a Mia Goth em outro papel de doida.
Os Banshees de Inesherin, com a dupla Colin Farrel e Brendan Gleeson que repetiram a dinâmica belíssima que já tinham feito em Na Mira do Chefe (In Bruges). Nesse filme com um humor bem irlandês vemos uma amizade que se transforma em um duelo de ódio.
Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon), o último do Scorcese com o DiCaprio e DeNiro é um resgate histórico sobre o povo Osage, de sua sorte em descobrir petróleo em sua reserva, e do azar do homem branco se levar pela habitual ganância e o extermínio ignorado.
Há uma menção rápida ao massacre de Tulsa, que sugiro uma pesquisa sobre o acontecimento que também é de pouco conhecimento (abordado na série Watchmen).
Scorcese foi mestre em não transformar a história de Assassinos da Lua das Flores em uma mascarada ode aos símbolos americanos, creio que outro diretor poderia dar toda luz na narrativa focada no “surgimento do FBI”.


Menções honrosas para:
Clonaram Tyrone (They cloned Tyrone), que foi subestimado.
Tár, da Cate Blanchet sendo a artista gênio cujo umbigo é o centro do universo.
El Conde, do diretor chileno Pablo Larraín, que reimaginou o Pinochet como um vampiro e que assim sendo, não morreu em 2006.
Beau Tem Medo (Beau Is Afraid), em que Joaquim Phoenix está ansioso (e com medo?) a vida inteira (umas 3 horas).
O Mundo Depois de Nós (Leave the World Behind), do diretor Sam Esmail, que fez uma das melhores séries da história (Mr Robot), num panorama apocalíptico. Ah, o filme é produzido pelo casal Obama.

Em se tratando de música fui um tiozinho bem agarrado ao passado nesse ano.
Mas posso destacar o ótimo trabalho de Tyler the Creator: Call Me If You Get Lost: The Estate Sale.
Um rapper que me fez gostar da música Wharf Talk e Dogtooth, grande indicativo de que o cara é bom.
Sem dizer na ótima Sorry Not Sorry, com um clipe que mostra suas versões artísticas em uma reflexão com possíveis culpas.

Mas Tyler merece também um puxão de orelha.
Agora em dezembro lançou um clipe para divulgar a sua marca de roupas utilizando uma música brasileira na íntegra (Duplo Sentido performado por Tetê da Bahia; cujo compositor é Gilberto Gil).
A encrenca se dá pelo fato de não ter mencionado/creditado/combinado os direitos com os produtores.
“Why you puttin’ bad vibes in the?”


Ah, e não menos importante, lancei novo livro esse ano:
Quase Mortes.
Uma coletânea de contos com o tema morte em suas objetividades e subjetividades nos mais diversos gêneros.


Você pode comprar a versão impressa aqui.
E o ebook também está disponível aqui.


Na esperança por um 2024 com mais justiça, humanidade e paz.
Ma’a salama!

Naruto ou A Cruzada das Crianças

*** CONTÉM SPOILERS ***

Descobri o que era Filler quando mencionei que desejava assistir Naruto, e amigos me disseram que tinha muita encheção de linguiça e acabaram por explicar do que se
tratava.
Ninguém poderia me chamar de Otaku, hehehe.
Ao iniciar em 2020 a saga do garoto loiro com a raposa de nove caudas selada em seu corpo, a constatação veio certeira: uma penca de episódios que desanimam quem não é naruteiro raiz.

O Time 7
O Time 7

Fico satisfeito com o término de Shippuden, que fechou a estória proposta desde o início, explicando o surgimento do mundo ninja e dos chakras.
Tanto que não tenho interesse algum em ver Boruto (Naruto Next Generations).

No entanto, foi uma experiência legal acompanhar essa saga criada por Masashi Kishimoto.
Ao longo de pouco mais de um ano e meio acompanhei os dois volumes (com fillers) e o resultado foi positivo.
Não somente pela estética e trama de grandes batalhas que satisfazem o estilo Shonen (a luta entre Gaara e Rock Lee é umas melhores da série), ou pelo fato de me manter atualizado com uma nova geração que enchia as redes com referências naruteiras e com cosplays das tais capas pretas com nuvens vermelhas da akatsuki.


Ou então pelas diversas referências religiosas e mitológicas como do Xintoísmo (Izanagi – pai dos deuses, Izanami – mãe dos deuses, Susano – deus do mar, Amaterasu – deusa do sol), ou Hinduísmo (Chakra, Flecha de Indra, os sete caminhos de Pain) entre outras.
São detalhes que enriqueceram muito a experiência, mas um dos maiores destaques ao desenrolar da série, tanto do volume 1 (Naruto) quanto do volume 2 (Shippuden) é que 95% dos arcos de personagens são voltados para dramas e traumas ocorridos na infância. Tanto que a série poderia muito bem ter o subtítulo de “crianças sofridas”.
O que para uma cultura como a do Japão se encaixa num patamar de confronto ao que vivem: suicídios em altos índices em crianças e adolescentes, niilismo da juventude expresso em diversos grupos, dúvidas das novas gerações quanto a economia e afins.

Arrisco a dizer que Kishimoto é um grande artista devido a essa consciência artística nobre, que é de destaque quando se produz conteúdo para crianças e adolescentes consumirem.
Espero que tenha alcançado o coração de gerações com o espírito de amizade, fraternidade, liberdade e sonhos vívidos expressos entre uma luta e outra e refeições de ramen.

Ma’a Salama Dattebayo!