O Melhor de 2024

“Alma da minha alma”.
O autor dessa frase é Khaled Nabhan, cidadão palestino de Gaza, ela foi proferida enquanto abraçava em seu colo o corpo morto de Reem, sua neta de cinco anos, vítima de um bombardeio israelense.
Em 16 de dezembro de 2024, Khaled também foi morto por um bombardeio israelense, somando aos mais de 45 mil humanos mortos (e contando…), sendo 17 mil apenas crianças.
Todo ano deixo claro que a retrospectiva é somente sobre coisas boas.
Mas acho injusto ignorar o que ocorre em Gaza, na Cisjordânia, no Líbano.
A frase de Khaled é puro amor de um avô ante ao corpo ceifado de vida por um governo racista e explorador como o de Israel.
Em abril de 2024, durante minhas férias no México visitei o museu Memoria y Tolerancia, na Cidade do México. Além de ter as seções com os temas dos genocídios históricos mais famosos, como o holocausto perpetrado pelos nazistas, o dos armênios, o de Camboja e etc etc, o peso e a densidade de aperto no coração de ver todos aqueles registros foram eclipsados quando me deparei com uma obra exposta no vão entre andares, com várias esferas transparentes penduradas em fios. Ao ler a placa explicativa entendi que aquilo era uma homenagem especial às crianças mortas em genocídios, ficando suspenso no nada e perdido na história pessoas com futuros que nunca ocorreram, poderiam ser cidadãos com diversos potenciais, ou então nenhum, porque vida humana alguma não pode ser qualificada por potencial produtivo, não somos formigas.

Eternas Crianças (Vítimas de genocídios)
Eternas Crianças (Vítimas de genocídios)

Livros

No Rastro de Enayat (Iman Mersal; Trad. Nisrene Matar): Não é uma biografia, é um trabalho de investigação de interesse histórico-sócio-cultural, de rastreio de um sumiço injusto da história de uma autora egípcia. Me alegra a concepção dessa obra pelo fato de ser escrito por uma mulher árabe, ter vencido prêmio árabe e traduzido para o português pela querida Nisrene Matar.
Uma densidade original de vozes que clamam pelo lugar ao mundo.
Os Grandes Carnívoros (Adriana Lisboa): Prosa deliciosa que desloca no tempo enquanto trata de exílio, redenção e anseios do passado ante a protagonista que é ativista ambiental. A violência humana no páreo como encruzilhada da noção de pertencimento da natureza coletiva.
Pangeia (Mariana Basilio): Um atlas poético, partindo da noção do título, do continente único dos primórdios do mundo ainda sem humanos, uma construção literária que enquadra a humanidade na “etimologia do ser”. Em “Nós Não Somos Números”, impossível não se emocionar, principalmente pela noção de ser homenagem aos mortos de Gaza da recente barbárie perpetrada pelo estado de Israel.
Os Despossuídos (Ursula K Le Guin; Trad. Susana L. de Alexandria): A genialidade de Ursula não é somente tratar argumentos científicos, sejam hard ou soft, da especulação do gênero da ficção científica, ela é sim muito boa em pincelar a estética e tudo o que é necessário numa obra do tipo, mas o grande tchan é o quão magnífica ela saber sustentar as questões sociais e culturais com importância que eclipsam qualquer “exatas comum” de outras grandes sagas. Leitura obrigatória para quem só leu o ABC (Asimov, Bradbury, Clarke) da ficção científica.
Iluminações (Alan Moore; Trad. Adriano Scandolara): Uma confissão, desse livro de contos não li o “Lagarto Hipotético”, tentei por duas vezes, mas a leitura não fluiu, e abandonei.
De resto, todos os outros contos são sublimes, “Local Local Local” é um apocalíptico hilário. E o “O que se pode saber a respeito do Homem-Trovão”, que tem o tamanho de um romance é uma bela composição discreta (nem tanto para entendedores) da história da indústria dos quadrinhos com toda a angústia sentida pelo genial autor que sofreu nesse meio, sendo um artista transgressor que abandonou de vez esse mundo e vive dando a letra de como é nocivo adultos cultivarem idolatrias doentias a personagens criados há quase um século para entreter crianças e a classe trabalhadora.

Pangeia
Pangeia



Enfim li Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy, ou seja, completei a leitura de ao menos um livro por autor do tal Big Four do cânone americano definido pelo crítico Harold Bloom, ou seja, grande matéria fecal, mas, enfim, adorei o livro e o talento de Cormac para uma trama sombria e sanguinária.
Gostei muito de Búfalos Selvagens, da Ana Paula Maia, fechando uma trilogia iniciada com Enterre Seus Mortos. Será a última vez que leremos Edgar Wilson?


Filmes


Duna 2 deu sequência ao épico, uma bela experiência ter assistido no cinema, mesmo não sendo perfeito (algumas problemáticas de edição e algumas cenas de ação mano a mano parcas).
Sociedade da Neve (La sociedad de la Nieve) é um ótimo relato do famoso acidente que forçou os sobreviventes a atos de canibalismo com os corpos dos companheiros e amigos mortos.

O pódio fica para:
O nacional Ainda Estou Aqui, dirigido de forma bela e angustiante por Walter Salles com ótima atuação de Selton Mello e a perfeita Fernanda Torres e sua mãe Fernanda Montenegro.
O japonês Godzilla Minus One que encantou em mim a criança fã de kaijus. Genial a trama ser posicionada em um período recente do pós-guerra, tão traumático para o povo japonês.


Zona de Interesse de Jonathan Glazer, diretor esse de vários videoclipes que adoro, como Karma Police do Radiohead, Rabbit in your Headlight do Unkle, Virtual Insanity do Jamiroquai, para citar alguns.
O filme é um retrato sombrio da banalidade e desfoque de uma família/sociedade/cultura ante a barbaridade que foi o holocausto.
A abordagem de não mostrar uma morte em cena elaborada e ainda assim deixar claro que do outro lado do muro há um lugar de total anulação da vida humana.
E o discurso corajoso do diretor Jonathan Glazer no Oscar, que mencionou o que ocorre em Gaza, sim, um genocídio, e que continha sendo documentado e transmitido em tempo real aos olhos do mundo.

Zona de Interesse
Zona de Interesse


Menções honrosas: Guerra Civil (Civil War), Rebel Ridge (ação heróica massa), Alien Romulus (ótima sessão da tarde), Jurado Nº 2 (Juror #2), Furiosa Uma Saga Mad Max., A Substância (The Substance).


Séries

Shogun veio com a promessa de ser minissérie, porém, o sucesso forçou a renovação para mais uma temporada. Eu, que amei ler os livros de Musashi e apreciador de histórias da época dos samurais que povoavam aquela ilha do pacífico, adorei os episódios com produção de arte belíssima, com o ator Hiroyuki Sanada fazendo o papel de sempre, e com a trilha sonora (novamente Atticus Ross).
Únicos defeitos seriam o ator “branco” Cosmo Jarvis, que tem uma cara de cachorro pidão o tempo todo, e os falhos diálogos “Now we are speaking portuguese”.

Ripley. Andrew Scott é ótimo como o vilão Moriarty de Sherlock Holmes ou como o padre de Fleabag. Mas é na pele de Ripley que o ator e personagem expõe seu talento. Bela fotografia, um P&B como pouco se vê, e com as tensões que se espera de um malandro tomando lugar em finos e clássicos ambientes italianos.
O Problema dos 3 Corpos (americana e chinesa). Sim, assisti as duas versões.
A versão estadunidense é produção original Netflix pelas mãos dos mesmos de Game of Thrones.
A versão chinesa contém mais episódios (trinta), e está na faixa no Youtube, com legenda em inglês (bora treinar). Ambas são ótimas adaptações dos livros do autor chinês Cixin Liu que é um expoente na ficção científica global.
Curti bastante a versão chinesa pelo ritmo diferente e com destaque maior pelos assuntos tratados na trama, a qualidade em alguns momentos lembra uma novela, e isso não é demérito algum, pelo contrário, deixa a experiência da empatia aos personagens mais palpável.
A cena do navio das duas versões, mesmo que tratadas de formas diferentes, foi uma das melhores “ações-absurdas-audaciosas” que vi nos últimos tempos.

Industry foi a minha preferida, iniciei o acompanhamento da série pouco antes da terceira temporada e feliz por terem anunciado uma quarta, embora o episódio final ter focado em resoluções do principais arcos dos personagens. Ansioso para ver se segurarão a bronca, e de ver o povo problemático do mercado financeiro ampliando as escrotices de suas vidas.

Shogun
Shogun


Menções honrosas:
Pinguim, Senna, Sr. e Sra. Smith (Wagner Moura reinando lá fora), Cem Anos de Solidão (Cien años de soledad) em que Gabo ficaria feliz com a adaptação e a boa surpresa Entrevista Com Vampiro (Interview With the Vampire), Fargo (5ª temporada, mais próxima cronologicamente e em termos de realidade)


Música

Não utilizo o Spotify para ouvir músicas, então não posto a retrô como meio mundo faz no fim de ano.
Assim, costumo apelar para a memória mesmo do que rodou mais no repeat (esse é o critério mais importante) durante o ano.
E daí eu removo coisas como “música-lançada-há-10-anos” em Slow and Reverb ou 100 bpm Plus HQ Multi Compress, e artistas reais (evito IA) tocando músicas e hinos famosas em outros estilos, ex: Personal Jesus in Negative (a original do Depeche Mode no estilo de Type O Negative).

Top 7 do MMO:
The Dandy Warhols, com o magistral álbum Rockmaker.
As faixas Danzig With Myself, I’d Like to Help You With Your Problem e Teutonic Wine foram as que mais ouvi nesse ano ligeiro ano de 2024.
As duas primeiras contém as participações de Black Francis (Pixies) e Slash (um dos deuses da guitarra pelamor) respectivamente.
Pearl Jam com Dark Matter. Eddie Vedder é o que sobrou dos grandes do Grunge e ainda produz coisa boa. Upper Hand é maravilhosa.
Justice com HYPERDRAMA. O defeito da música Incognito é que ela acaba.
Childish Gambino com Atavista. Enfim Donald Glover conseguiu superar o hit This is America com esse álbum xuxu beleza. Final Church tocou no mínimo 100 vezes.
The Cure com Songs of a Lost World. Robert Smith fez valer 16 anos por um trabalho decente, com a identidade da angústia do passado em cerca de cinquenta minutos.
Glass Beams com Mahal. O grupo indo-australiano liderado pelo produtor Rajan Silva mescla as concepções musicais ocidentais com fortes notas orientais. O álbum curto instrumental é bem relaxante.
Kokoko com Butu. Kokoko é uma banda da República Democrática do Congo, não são somente uma banda eletrônica experimental com referências africanas, mas também se destacaram por usar muitos instrumentos caseiros feitos de sucata e captados do lixo.
Em dezembro fui ao show deles no Sesc Paulista, depois de um hiato sem ir a shows, e curti pracas.
Sugiro começar a ouvir por Salaka Bien e depois degustar tudo o que fizeram nos últimos anos.

ROCKMAKER
ROCKMAKER


HQ (Gibi para os mais íntimos)

Os Filhos de El Topo, com roteiro de Alejandro Jodorowsky e arte de José Ladrönn.
Jodorowsky não só dá autógrafos em nome de Paulo Coelho (pesquise esse causo), ele também mantém sua criação artística pulsando mesmo na alta idade, e nesse ano aqui em terra brasilis lançaram esse gibi cuja trama é a continuação do filme mexicano El Topo, escrito, dirigido e protagonizado pelo próprio Jodô em 1970.
Que cores e traços lindos que o artista Ladrönn empregou e que papel e gramatura gostosa e sublime que a editora Comix Zone dedicou nessa edição br.

Os Filhos de El Topo
Os Filhos de El Topo


Documentário


Hayao Miyazaki e a Garça (Hayao Miyazaki and the Heron).
Esse documentário acompanha em pouco mais de duas horas o projeto e trabalho do renomado diretor e artista Hayao Miyazaki que encantou e continua encantando a infância de milhões com seus animes belos e introspectivos, durante a produção de sua útima animação: O Menino e a Garça (The Boy and the Heron).
Gostei bastante desse documentário que acompanha o cotidiano de forma intimista, mas creio que talvez seja legal ter uma postagem somente sobre ele acerca das minhas impressões. Mas não prometo nada.


Costumo seguir uma linha pacifista e menos violenta, não por motivação religiosa, o mais correto seria por definição filosófica de um conceito humanista e ideal (certamente utópico) da pureza racional.
Mas não posso fingir que não me deleito com os ruídos internéticos que se proliferam acerca do ocorrido em Nova York pelos pipocos que o jovem Luigi Mangione deu em CEO milionário de uma empresa de seguros de saúde que declinavam de forma indecente coberturas de procedimentos de pessoas que pagavam por aquilo, mas não usufruíam quando mais precisavam.

Luigi vs CEO pilantra
Luigi vs CEO pilantra



Por um 2025 mais próspero, com justiça e paz.
Ma’a Salama!

O Melhor de 2023

Findo 2023.
Triste final de ano para a minha terra (sou palestino nascido em Jerusalém, para quem não sabe), acometida no último trimestre por um evento violento, com práticas genocidárias aos olhos do mundo (no ataque e na represália), em tempo real e com a atmosfera da impotência a depreciar a alma dia a dia.
Para quem segue o site aqui, já sabe que posto somente as melhores coisas, ou boas.
Mas o bloco que inicio, que é o de leituras vai para um livro importante para tudo o que está acontecendo:
Meu Nome é Adam, de Elias Khoury.
O livro é uma reconstrução da memória do Adam do título, nascido na Nakba (catástrofe palestina), e perpassa o massacre de Lidd, um dos muitos vilarejos que sofreram extermínio no início da ocupação israelense.
Muitas histórias de 1948 foram caladas por décadas, ocultas em narrativas que lutam para ganhar luz.
E esse romance é triste e belo em retratar essa memória de dor, de luta e esperança.
Tradução de Safa Jubran.

Meu Nome é Adam
Meu Nome é Adam



Onde Pastam os Minotauros, de Joca Reiners Terron.
Um abatedouro de bois especializado em halal (selo acordado de práticas ligadas à lei islâmica) no interior do Mato Grosso, com fábula do minotauro pelo ponto de vista dos bois e minotauros. Há palestinos em um paratexto intercalado com outros paralelos, seja na matança pelo consumo amparado pelo capitalismo sanguinolento, seja pelos labirintos das noções que temos de nossos meios para sobreviver na esperança de um dia o mundo ser um lugar mais… justo.

Roxo, de Andréa Berriell.
Fazia tempo que não lia um romance policial tão bom. E não é somente um romance policial, é uma narrativa envolvente que segundo muita gente comentou nas redes: “Daria uma bela temporada de True Detective”.
Andréa Berriell transita entre passado e presente na trama com ótimas referências textuais e visuais que vão além da cor título.

Vou Sumir Quando a Vela se Apagar, de Diogo Bercito.
Yacub e seu melhor amigo Butrus trabalham numa vila precária e rural síria.
Há a saga de um jovem sírio que vem ao Brasil dos anos 1930. Algo que me fez refletir sobre as vivências de meu avô mascate que veio da Palestina para as terras brasileiras em décadas posteriores a da história, mas que provavelmente com muitos pontos a se imaginar sobre choques culturais.
É uma história sobre amor, tragédia, distância e escolhas, muitas escolhas.
Escolhas essas que são como um dedo a passar rente a chama de uma vela, transitando em dualismos, seja no Oriente-Ocidente, Real-Fantástico, Vou-Fico, Aceitação-Culpa.
E tem um Jinn no meio de tudo isso.


Corpo Desfeito, de Jarid Arraes.
É com uma técnica invejosa que Jarid conta a história de Amanda, que sofre pelas mãos de quem deveria ser seu porto seguro. Leitura que flui com uma facilidade sem perder o charme, fez um homem barbudo relembrar a atmosfera dos anos 90 e empatia por uma personagem sofrida.


Mil Placebos, de Matheus Borges.
A internet, ah, a internet. O que há na internet, e em nós mesmos nessa era multiconectada?
Mil Placebos é uma ficção científica, não somente do nível “Tudo tá sendo FC agora”, mais ou menos como a epígrafe de JG Ballard que tá no começo do livro.
Mil Placebos é do tipo de livro que acho melhor a pessoa se arriscar a ler sem saber muito, sem ler a sinopse e ir somente no “vai que é sucesso”.
Ah, aparece um palestino lá pelo meio.

A Telepatia Nacional, de Roque Larraquy.
O argentino Roque Larraquy é engenhoso no trato que dá ao mostrar o tráfico de indígenas para o projeto de um parque etnográfico, ou zoológico humano, na Buenos Aires dos anos 1930.
E para que o absurdo não pare aí, há um objeto trazido pelos indígenas que possibilita um evento telepático.
E tem um senso de humor de um nível que não esperava da terra dos hermanos.
Tradução de Sérgio Karam.


Das séries que tiveram suas últimas temporadas, vou sentir muito a falta de Succession.
E também de How To With John Wilson.
Velho demais para Morrer Jovem (Too Old To Die Young) foi uma surpresa caçada, dirigida pelo dinamarquês Nicolas Winding Refn. Pesado.
Algo leve e que garante boas risadas é Na Mira do Júri (The Jury Duty), em que há toda uma estrutura de tribunal e julgamento encenada para enganar apenas uma pessoa que pensa que tudo é real oficial.
Planeta dos Abutres (Scavengers Reign) é uma série animada que mostra um grupo de trabalhadores espaciais “naufragados” em um planeta inóspito, com uma natureza tão mortal quanto bela. Ao que parece é a melhor coisa que a HBO (ou Max) lançou de novidade nesse ano.
Corpos (Bodies), foi uma minissérie bacaninha de ficção-científica envolvendo viagem no tempo.

Esse ano foi o que parei para assistir a uma indicação que um amigo fez na faculdade 15 anos atrás. E então assisti o anime Monster do criador Naoki Urasawa. Achei genial.
E fui pego de surpresa quando a Netflix lançou Pluto, outro anime de Naoki Urasawa. Uma minissérie que mostra um futuro em que humanos e robôs convivem com leis regendo suas vivências. A trama aborda as discussões que lembram Blade Runner, mas focando em um drama que vai ter paralelos com acontecimentos do mundo real (Guerra do Iraque pelas mentiras criadas pelos EUA) com o universo especulativo de lá (Guerra do Reino da Pérsia pelas mentiras criadas pelos Estados Unidos da Trácia).

Mas a série campeã foi Treta (Beef).
Um desentendimento no estacionamento acaba gerando um ódio entre Amy (Ali Wong) e Danny (Steven Yeun) que percorre os 10 episódios que vão além de uma perseguição de gato e rato. Falar mais que isso é entregar spoilers irresponsáveis. Ainda bem que não dirijo, e tenho a terapia (self-med-abs) em dia.


De HQs pouco consumi. Mas As Muitas Mortes de Laila Star, de Ram V, foi a melhor aquisição e leitura.
O desenlace da deusa da morte do hinduísmo ser demitida após o nascimento do deus que viria a inventar a imortalidade, e as reencarnações dessa demitida tentando se recolocar no mercado de trabalho com a tentativa de impedir que a pessoa nunca invente a tal da imortalidade, tudo é feito com uma sensibilidade, com homenagem cultural, e com cores e traços muito fodas que não via há tempos.



Se teve um documentário que merece respeito e é uma obra de noção da memória e da preservação da arte é Retratos Fantasmas de Kléber Mendonça Filho.
Tem a visão pessoal e intimista sobre o uso da casa que sua mãe construiu como cenário de suas produções. Tem mapas nostálgicos de uma Recife mágica onde povoa uma cultura incessante. Tem um projetista que enjoou de O Poderoso Chefão (The Godfather) e viu vantagem quando fardados da ditadura chegaram para encerrar o cinema: “é bom que vou largar mais cedo”.
Ah, e tem um cabra que fica invisível.
Uma pena que a Academia do Oscar não o considerou como indicado.




Todo um auê por Barbie e Oppenheimer que uniu a internet para infinitos memes, e sim, os filmes são bons, mas também superestimados diante de todo esse auê.
Os meus favoritos desse ano:
Piscina Infinita (Infinity Pool), dirigido por Brandon Cronenberg (sim, filho daquele Cronenberg), que tem a Mia Goth em outro papel de doida.
Os Banshees de Inesherin, com a dupla Colin Farrel e Brendan Gleeson que repetiram a dinâmica belíssima que já tinham feito em Na Mira do Chefe (In Bruges). Nesse filme com um humor bem irlandês vemos uma amizade que se transforma em um duelo de ódio.
Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon), o último do Scorcese com o DiCaprio e DeNiro é um resgate histórico sobre o povo Osage, de sua sorte em descobrir petróleo em sua reserva, e do azar do homem branco se levar pela habitual ganância e o extermínio ignorado.
Há uma menção rápida ao massacre de Tulsa, que sugiro uma pesquisa sobre o acontecimento que também é de pouco conhecimento (abordado na série Watchmen).
Scorcese foi mestre em não transformar a história de Assassinos da Lua das Flores em uma mascarada ode aos símbolos americanos, creio que outro diretor poderia dar toda luz na narrativa focada no “surgimento do FBI”.


Menções honrosas para:
Clonaram Tyrone (They cloned Tyrone), que foi subestimado.
Tár, da Cate Blanchet sendo a artista gênio cujo umbigo é o centro do universo.
El Conde, do diretor chileno Pablo Larraín, que reimaginou o Pinochet como um vampiro e que assim sendo, não morreu em 2006.
Beau Tem Medo (Beau Is Afraid), em que Joaquim Phoenix está ansioso (e com medo?) a vida inteira (umas 3 horas).
O Mundo Depois de Nós (Leave the World Behind), do diretor Sam Esmail, que fez uma das melhores séries da história (Mr Robot), num panorama apocalíptico. Ah, o filme é produzido pelo casal Obama.

Em se tratando de música fui um tiozinho bem agarrado ao passado nesse ano.
Mas posso destacar o ótimo trabalho de Tyler the Creator: Call Me If You Get Lost: The Estate Sale.
Um rapper que me fez gostar da música Wharf Talk e Dogtooth, grande indicativo de que o cara é bom.
Sem dizer na ótima Sorry Not Sorry, com um clipe que mostra suas versões artísticas em uma reflexão com possíveis culpas.

Mas Tyler merece também um puxão de orelha.
Agora em dezembro lançou um clipe para divulgar a sua marca de roupas utilizando uma música brasileira na íntegra (Duplo Sentido performado por Tetê da Bahia; cujo compositor é Gilberto Gil).
A encrenca se dá pelo fato de não ter mencionado/creditado/combinado os direitos com os produtores.
“Why you puttin’ bad vibes in the?”


Ah, e não menos importante, lancei novo livro esse ano:
Quase Mortes.
Uma coletânea de contos com o tema morte em suas objetividades e subjetividades nos mais diversos gêneros.


Você pode comprar a versão impressa aqui.
E o ebook também está disponível aqui.


Na esperança por um 2024 com mais justiça, humanidade e paz.
Ma’a salama!

O Melhor de 2017

Dizia em algum fórum de teóricos da conspiração que 2017 seria o terceiro centenário da franco-maçonaria, e que em tal aniversário os donos do mundo queriam colorir os céus com fogos nucleares para celebrar o seu domínio universal.
Apesar de o Doomsday Watch ter avançado alguns minutos para a meia-noite com os dois doidos de pedras com poder a trocarem insultos e ameaças, a saber Trump e Kim Jong-Um, tudo correu bem. Com a exceção de uma bomba-mãe lançada no Afeganistão pelos EUA, nenhuma ogiva nuclear voou pelos céus.
De foguetes, espero somente os da SpaceX e agências espaciais afins a caminharem rumo ao progresso humano, e não à destruição.

A gafe de início de ano foi na cerimônia do Oscar, em que erraram a nomeação do prêmio principal da noite, o de melhor filme, fazendo todos os produtores e atores de La La Land subirem ao palco receber a estatueta até perceberem que não eram os reais vencedores. Moonlight venceu, rendendo até música de Jay-Z sobre a sua nova exteriorização de músicas sobre o racismo contemporâneo.

Jordan Horowit exibe o real vencedor da noite: Moonlight

Jordan Horowit exibe o real vencedor da noite: Moonlight

Embora até esse minuto eu esteja no Hype do episódio 8 de Star Wars, o filme do ano foi com certeza Dunkirk de Christopher Nolan, sobre a batalha perdida na praia de Dunquerque, em que a sobrevivência se transforma na maior vitória em cenas de desespero acompanhadas pela rima de tensão de uma narrativa não linear entre diferentes pontos de vista dos acontecimentos e da trilha sonora do compositor Hans Zimmer em que abusou da Escada de Shepard.

Dunkirk: Sobrevivência é a maior vitória

Dunkirk: Sobrevivência é a maior vitória

Outra pérola foi Blade Runner 2049, um filme com excelente produção de arte, acertou em não realizarem um remake, a opção da continuação deu folego ao clássico, cuja missão não seria de superar o original de 1982. Embora o filme tenha sido um dos melhores do ano, não é para qualquer espectador, a duração de pouco mais de duas horas e quarenta minutos para uma narrativa sem muita ação num futuro cyberpunk pode ter feito alguns desavisados saírem reclamando do filme. Azar o deles…

Na telona brasileira o filme do ano foi Bingo: O Rei das Manhãs, do direto Daniel Rezende, que foi indicado ao Oscar de melhor montagem por Cidade de Deus em 2004.
O filme mostra a vida de um ator de pornochanchadas tentando subir na carreira, até que se arrisca num teste de audição para o papel de um apresentador de um programa infantil vestido de palhaço que fazia sucesso nas tevês americanas, mas que por aqui o padrão do roteiro não estava vingando, até que o ator decide improvisar e tomar aulas com um palhaço de circo de verdade, interpretado pelo falecido Domingos Montagner. Vladimir Brichta tem uma ótima atuação nessa história em que um palhaço doido num programa infantil nos anos oitenta acaba em drama.

Bingo: típico programa infantil dos anos 80

Bingo: típico programa infantil dos anos 80

Logan foi uma grande surpresa, estava com o pé atrás pelos trailers que havia visto, o resultado foi magnifico na despedida do papel de Hugh Jackman como o mutante machão que levou muito chumbo na vida. Além do pesar dos personagens, as cenas de ação ficaram sublimes por sua simplicidade. O que ocorreu no cassino, sem muito CGI me deixou extasiado.
Planeta dos Macacos: A Guerra (War for the Planet of the Apes) foi outro ponto alto do ano. Com coragem de fecharem a trilogia sem deixa para continuação, o filme foi perfeito em mesclar elementos de outros gêneros, além do clima do clássico Apocalipse Now havia cenas em que senti requintes de um faroeste.
Menções honrosas: Corra! (Get Out!), Trainspotting 2,  Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures), Fragmentado (Split) na brilhante volta de M. Night Shyamalan, Valerian e a Cidade dos Mil Planetas (Valerian and the City of Thousand Planets) e Sully – O Heroi do Rio Hudson (Sully).

No mundo das séries, Game of Thrones atingiu o seu apogeu em audiência e popularidade, mas senti que essa temporada foi menos conclusiva que a anterior, os Caminhantes Brancos pareciam o povo hebreu da época do êxodo vagando no deserto, demoram muito para chegar até Westeros e a desculpa de que precisavam do dragão não cola, visto que teriam todo o processo adiantado se tivessem beirado a muralha.
A estreia mais aguardada teria sido Deuses Americanos (American Gods), baseada no livro de Neil Gaiman, sobre uma guerra entre os antigos e novos deuses. Apesar dos episódios terem se estendido de forma redonda com a primeira parte do livro e o final ter ficado modesto, há dúvidas se a série continuará, pois o diretor e produtor Brian Fuller já sinalizou problemas de divergência criativa com os estúdios. Seria outra furada do diretor que já nos deixou órfãos de Hannibal?
Pude cumprir com a minha meta de matar as séries Californication e Mad Men.
Californication possui episódios de curta duração, menos de 30 minutos, enredo simples, muitos dos quais com finais previsíveis, mas me cativou quando mais moleque (entenda-se algo entre 21 anos), talvez pelo fato de ser na Califórnia. Ou então, se for mais verdadeiro comigo mesmo, pelo fato do personagem principal Hank Moody (David Duchovny) ser um escritor boêmio que pegava muita mulher top e eu deve ter pensado que ser escritor seria isso…
Já Mad Men, que série engenhosa! Acho que ficaria no meu Top 5 de séries. Em muitos momentos parava e pensava que não passava de novela, mas como me desgrudar desses episódios? Muitos personagens bem trabalhados nas tramas, o roteiro de acordo com a época, muitos detalhes históricos entremeados (década de 1960) com tudo que podia se afetar, fosse na área da publicidade e propaganda, fosse no cotidiano.
Mas a série que me cativou de maneira incompreensível foi a temporada de Twin Peaks desse ano, continuação da primeira temporada de 90-91, isso mesmo, essa série veio ser continuada após todo esse tempo, com apenas um filme prequel lançado em 92 intitulado Twin Peaks – Fire Walk with Me.
Em vários episódios (se não em todos) me perguntava: “Por que estou assistindo isso?”, pois além de não ter assistido à temporada original, mea culpa eu sei, a história tem um pontos de liberdade criativa excessiva, pois o diretor nada mais é que David Lynch, que já o conhecia por filmes como Duna (Dune) e Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive).
Twin Peaks pode ser comparado a um Arquivo X, porém, com requintes de filme arte feitos com baixo orçamento, há efeitos especiais mais simples dos encontrados em episódios antigos de Power Rangers, no entanto, as cenas, diálogos, personagens excêntricos e fotografias dedicadas te prende, e por mais que você não saiba a razão de assistir aquilo verá até o último episódio e ficará torcendo para que a próxima temporada não demore outros 25 anos.

Twin Peaks O Retorno: se não entender 90% dessa série e ainda assim adorar, bem-vindo a bordo

Twin Peaks O Retorno: se não entender 90% dessa série e ainda assim adorar, bem-vindo a bordo

De HQ’s achei um ano fraco, não foi muita coisa que me atraiu atenção, apesar de diversos títulos terem sido lançados. A exceção foi a nacional Rio 2031, de Giuseppe Andreozzi e Gabriel Picolo, em que num futuro não muito distante o mundo se vê em uma nova guerra fria, divida entre as potências TheNation e NewState, criadas por conglomerados de multinacionais. Em cada uma dessas novas superpotências existem os TIMED’s, meta humanos cujo poder tem limite que culmina junto com sua vida, por isso o nome de Timed.
No primeiro volume, vemos que o Rio de Janeiro ainda não se uniu a uma dessas potências, se transformando num palco de disputa entre milícias, mutantes e políticos.

Rio 2031

Rio 2031

No ano em que dominou Despacito e Shape of You o que me deixou naquele replay infinito foram as faixas do novo álbum de Gary Numan: Savage (Songs from a Broken World) e além delas, a intimista Bed of Thorns, faixa inspirada e incorporada à trilha sonora do filme Ghost in the Shell.
Além disso, Macaco Bong lançou um albúm estonteante, em que com o seu estilo fizeram uma releitura do clássico Nevermind, transformando-se no Deixa Quieto. O trabalho é de pirar.
Outro lançamento primordial para os meus tímpanos foi o álbum Death Song, da banda The Black Angels. Sim, o rock ainda vive, e melhor, respira sem aparelhos quando toca ao estilo psicodélico como na lúdica faixa Life Song. Viagem Pura.

Em um ano que foi se concluindo com muito stress uma leitura salvou minhas noites: John McLoving e a Busca do Mijo da Vida, do autor Mickael Menegheti.
Se o “Mijo” no título não passou despercebido pode ter certeza de que o livro também não foi apenas um nesse ano, dos nacionais foi o meu predileto, por ser de faroeste e ser recheado de comicidade em aventuras numa história alternativa em que o Brasil foi colonizado pelos ingleses, e ao invés de um Cristo Redentor há um enorme Big Ben no Corcovado. Mcloving é rápido no gatilho e danado a encontrar o que busca, mesmo que seja o mijo da vida, lenda indígena que o carrega numa jornada tresloucada entre vários tiroteios e bolas de feno rolando.

John McLoving: Faroeste num Brasil diferente

John McLoving: Faroeste num Brasil diferente

Dos internacionais foi Enclausurado, do inglês Ian McEwan que me deixou fascinado. Dando pinceladas de nostalgia literária ao me lembrar de Memórias Póstumas de Brás Cubas, pois o narrador da história nada mais é do que um feto, enclausurado no ventre da mãe, em diversas reflexões sobre o mundo que o aguarda, enquanto é testemunha do adultério da mãe com o tio e dos planos do dois para assassinarem o pai para ficarem com uma casa antiga como herança.

Enclausurado: um feto reflexivo e ansioso

Enclausurado: um feto reflexivo e ansioso

Sou do tipo que luta contra quando alguém diz que uma história “passou uma mensagem”, e não vou me contradizer aqui. Enclausurado reafirmou (e não mais do que isso) em mim a minha natureza míope: sou um otimista incorrigível.
E é com essa afirmação que encerro com a foto que mais me tocou nesse ano em que o holocausto nuclear não ocorreu como alguns teóricos da conspiração desejaram.
Nela, o morador Mohammed Mohiedin Anis de 70 anos fuma cachimbo e escuta música no quarto de sua antiga casa destruída em Aleppo, na Síria.
Apesar dos apesares, tamos aí! A vida tem muita arte e beleza para nos agraciar.

Mohammed Mohiedin Anis: apesar dos apesares, tamos aí!

Mohammed Mohiedin Anis: apesar dos apesares, tamos aí!

Ma’a salama 2017!