O Melhor de 2024

“Alma da minha alma”.
O autor dessa frase é Khaled Nabhan, cidadão palestino de Gaza, ela foi proferida enquanto abraçava em seu colo o corpo morto de Reem, sua neta de cinco anos, vítima de um bombardeio israelense.
Em 16 de dezembro de 2024, Khaled também foi morto por um bombardeio israelense, somando aos mais de 45 mil humanos mortos (e contando…), sendo 17 mil apenas crianças.
Todo ano deixo claro que a retrospectiva é somente sobre coisas boas.
Mas acho injusto ignorar o que ocorre em Gaza, na Cisjordânia, no Líbano.
A frase de Khaled é puro amor de um avô ante ao corpo ceifado de vida por um governo racista e explorador como o de Israel.
Em abril de 2024, durante minhas férias no México visitei o museu Memoria y Tolerancia, na Cidade do México. Além de ter as seções com os temas dos genocídios históricos mais famosos, como o holocausto perpetrado pelos nazistas, o dos armênios, o de Camboja e etc etc, o peso e a densidade de aperto no coração de ver todos aqueles registros foram eclipsados quando me deparei com uma obra exposta no vão entre andares, com várias esferas transparentes penduradas em fios. Ao ler a placa explicativa entendi que aquilo era uma homenagem especial às crianças mortas em genocídios, ficando suspenso no nada e perdido na história pessoas com futuros que nunca ocorreram, poderiam ser cidadãos com diversos potenciais, ou então nenhum, porque vida humana alguma não pode ser qualificada por potencial produtivo, não somos formigas.

Eternas Crianças (Vítimas de genocídios)
Eternas Crianças (Vítimas de genocídios)

Livros

No Rastro de Enayat (Iman Mersal; Trad. Nisrene Matar): Não é uma biografia, é um trabalho de investigação de interesse histórico-sócio-cultural, de rastreio de um sumiço injusto da história de uma autora egípcia. Me alegra a concepção dessa obra pelo fato de ser escrito por uma mulher árabe, ter vencido prêmio árabe e traduzido para o português pela querida Nisrene Matar.
Uma densidade original de vozes que clamam pelo lugar ao mundo.
Os Grandes Carnívoros (Adriana Lisboa): Prosa deliciosa que desloca no tempo enquanto trata de exílio, redenção e anseios do passado ante a protagonista que é ativista ambiental. A violência humana no páreo como encruzilhada da noção de pertencimento da natureza coletiva.
Pangeia (Mariana Basilio): Um atlas poético, partindo da noção do título, do continente único dos primórdios do mundo ainda sem humanos, uma construção literária que enquadra a humanidade na “etimologia do ser”. Em “Nós Não Somos Números”, impossível não se emocionar, principalmente pela noção de ser homenagem aos mortos de Gaza da recente barbárie perpetrada pelo estado de Israel.
Os Despossuídos (Ursula K Le Guin; Trad. Susana L. de Alexandria): A genialidade de Ursula não é somente tratar argumentos científicos, sejam hard ou soft, da especulação do gênero da ficção científica, ela é sim muito boa em pincelar a estética e tudo o que é necessário numa obra do tipo, mas o grande tchan é o quão magnífica ela saber sustentar as questões sociais e culturais com importância que eclipsam qualquer “exatas comum” de outras grandes sagas. Leitura obrigatória para quem só leu o ABC (Asimov, Bradbury, Clarke) da ficção científica.
Iluminações (Alan Moore; Trad. Adriano Scandolara): Uma confissão, desse livro de contos não li o “Lagarto Hipotético”, tentei por duas vezes, mas a leitura não fluiu, e abandonei.
De resto, todos os outros contos são sublimes, “Local Local Local” é um apocalíptico hilário. E o “O que se pode saber a respeito do Homem-Trovão”, que tem o tamanho de um romance é uma bela composição discreta (nem tanto para entendedores) da história da indústria dos quadrinhos com toda a angústia sentida pelo genial autor que sofreu nesse meio, sendo um artista transgressor que abandonou de vez esse mundo e vive dando a letra de como é nocivo adultos cultivarem idolatrias doentias a personagens criados há quase um século para entreter crianças e a classe trabalhadora.

Pangeia
Pangeia



Enfim li Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy, ou seja, completei a leitura de ao menos um livro por autor do tal Big Four do cânone americano definido pelo crítico Harold Bloom, ou seja, grande matéria fecal, mas, enfim, adorei o livro e o talento de Cormac para uma trama sombria e sanguinária.
Gostei muito de Búfalos Selvagens, da Ana Paula Maia, fechando uma trilogia iniciada com Enterre Seus Mortos. Será a última vez que leremos Edgar Wilson?


Filmes


Duna 2 deu sequência ao épico, uma bela experiência ter assistido no cinema, mesmo não sendo perfeito (algumas problemáticas de edição e algumas cenas de ação mano a mano parcas).
Sociedade da Neve (La sociedad de la Nieve) é um ótimo relato do famoso acidente que forçou os sobreviventes a atos de canibalismo com os corpos dos companheiros e amigos mortos.

O pódio fica para:
O nacional Ainda Estou Aqui, dirigido de forma bela e angustiante por Walter Salles com ótima atuação de Selton Mello e a perfeita Fernanda Torres e sua mãe Fernanda Montenegro.
O japonês Godzilla Minus One que encantou em mim a criança fã de kaijus. Genial a trama ser posicionada em um período recente do pós-guerra, tão traumático para o povo japonês.


Zona de Interesse de Jonathan Glazer, diretor esse de vários videoclipes que adoro, como Karma Police do Radiohead, Rabbit in your Headlight do Unkle, Virtual Insanity do Jamiroquai, para citar alguns.
O filme é um retrato sombrio da banalidade e desfoque de uma família/sociedade/cultura ante a barbaridade que foi o holocausto.
A abordagem de não mostrar uma morte em cena elaborada e ainda assim deixar claro que do outro lado do muro há um lugar de total anulação da vida humana.
E o discurso corajoso do diretor Jonathan Glazer no Oscar, que mencionou o que ocorre em Gaza, sim, um genocídio, e que continha sendo documentado e transmitido em tempo real aos olhos do mundo.

Zona de Interesse
Zona de Interesse


Menções honrosas: Guerra Civil (Civil War), Rebel Ridge (ação heróica massa), Alien Romulus (ótima sessão da tarde), Jurado Nº 2 (Juror #2), Furiosa Uma Saga Mad Max., A Substância (The Substance).


Séries

Shogun veio com a promessa de ser minissérie, porém, o sucesso forçou a renovação para mais uma temporada. Eu, que amei ler os livros de Musashi e apreciador de histórias da época dos samurais que povoavam aquela ilha do pacífico, adorei os episódios com produção de arte belíssima, com o ator Hiroyuki Sanada fazendo o papel de sempre, e com a trilha sonora (novamente Atticus Ross).
Únicos defeitos seriam o ator “branco” Cosmo Jarvis, que tem uma cara de cachorro pidão o tempo todo, e os falhos diálogos “Now we are speaking portuguese”.

Ripley. Andrew Scott é ótimo como o vilão Moriarty de Sherlock Holmes ou como o padre de Fleabag. Mas é na pele de Ripley que o ator e personagem expõe seu talento. Bela fotografia, um P&B como pouco se vê, e com as tensões que se espera de um malandro tomando lugar em finos e clássicos ambientes italianos.
O Problema dos 3 Corpos (americana e chinesa). Sim, assisti as duas versões.
A versão estadunidense é produção original Netflix pelas mãos dos mesmos de Game of Thrones.
A versão chinesa contém mais episódios (trinta), e está na faixa no Youtube, com legenda em inglês (bora treinar). Ambas são ótimas adaptações dos livros do autor chinês Cixin Liu que é um expoente na ficção científica global.
Curti bastante a versão chinesa pelo ritmo diferente e com destaque maior pelos assuntos tratados na trama, a qualidade em alguns momentos lembra uma novela, e isso não é demérito algum, pelo contrário, deixa a experiência da empatia aos personagens mais palpável.
A cena do navio das duas versões, mesmo que tratadas de formas diferentes, foi uma das melhores “ações-absurdas-audaciosas” que vi nos últimos tempos.

Industry foi a minha preferida, iniciei o acompanhamento da série pouco antes da terceira temporada e feliz por terem anunciado uma quarta, embora o episódio final ter focado em resoluções do principais arcos dos personagens. Ansioso para ver se segurarão a bronca, e de ver o povo problemático do mercado financeiro ampliando as escrotices de suas vidas.

Shogun
Shogun


Menções honrosas:
Pinguim, Senna, Sr. e Sra. Smith (Wagner Moura reinando lá fora), Cem Anos de Solidão (Cien años de soledad) em que Gabo ficaria feliz com a adaptação e a boa surpresa Entrevista Com Vampiro (Interview With the Vampire), Fargo (5ª temporada, mais próxima cronologicamente e em termos de realidade)


Música

Não utilizo o Spotify para ouvir músicas, então não posto a retrô como meio mundo faz no fim de ano.
Assim, costumo apelar para a memória mesmo do que rodou mais no repeat (esse é o critério mais importante) durante o ano.
E daí eu removo coisas como “música-lançada-há-10-anos” em Slow and Reverb ou 100 bpm Plus HQ Multi Compress, e artistas reais (evito IA) tocando músicas e hinos famosas em outros estilos, ex: Personal Jesus in Negative (a original do Depeche Mode no estilo de Type O Negative).

Top 7 do MMO:
The Dandy Warhols, com o magistral álbum Rockmaker.
As faixas Danzig With Myself, I’d Like to Help You With Your Problem e Teutonic Wine foram as que mais ouvi nesse ano ligeiro ano de 2024.
As duas primeiras contém as participações de Black Francis (Pixies) e Slash (um dos deuses da guitarra pelamor) respectivamente.
Pearl Jam com Dark Matter. Eddie Vedder é o que sobrou dos grandes do Grunge e ainda produz coisa boa. Upper Hand é maravilhosa.
Justice com HYPERDRAMA. O defeito da música Incognito é que ela acaba.
Childish Gambino com Atavista. Enfim Donald Glover conseguiu superar o hit This is America com esse álbum xuxu beleza. Final Church tocou no mínimo 100 vezes.
The Cure com Songs of a Lost World. Robert Smith fez valer 16 anos por um trabalho decente, com a identidade da angústia do passado em cerca de cinquenta minutos.
Glass Beams com Mahal. O grupo indo-australiano liderado pelo produtor Rajan Silva mescla as concepções musicais ocidentais com fortes notas orientais. O álbum curto instrumental é bem relaxante.
Kokoko com Butu. Kokoko é uma banda da República Democrática do Congo, não são somente uma banda eletrônica experimental com referências africanas, mas também se destacaram por usar muitos instrumentos caseiros feitos de sucata e captados do lixo.
Em dezembro fui ao show deles no Sesc Paulista, depois de um hiato sem ir a shows, e curti pracas.
Sugiro começar a ouvir por Salaka Bien e depois degustar tudo o que fizeram nos últimos anos.

ROCKMAKER
ROCKMAKER


HQ (Gibi para os mais íntimos)

Os Filhos de El Topo, com roteiro de Alejandro Jodorowsky e arte de José Ladrönn.
Jodorowsky não só dá autógrafos em nome de Paulo Coelho (pesquise esse causo), ele também mantém sua criação artística pulsando mesmo na alta idade, e nesse ano aqui em terra brasilis lançaram esse gibi cuja trama é a continuação do filme mexicano El Topo, escrito, dirigido e protagonizado pelo próprio Jodô em 1970.
Que cores e traços lindos que o artista Ladrönn empregou e que papel e gramatura gostosa e sublime que a editora Comix Zone dedicou nessa edição br.

Os Filhos de El Topo
Os Filhos de El Topo


Documentário


Hayao Miyazaki e a Garça (Hayao Miyazaki and the Heron).
Esse documentário acompanha em pouco mais de duas horas o projeto e trabalho do renomado diretor e artista Hayao Miyazaki que encantou e continua encantando a infância de milhões com seus animes belos e introspectivos, durante a produção de sua útima animação: O Menino e a Garça (The Boy and the Heron).
Gostei bastante desse documentário que acompanha o cotidiano de forma intimista, mas creio que talvez seja legal ter uma postagem somente sobre ele acerca das minhas impressões. Mas não prometo nada.


Costumo seguir uma linha pacifista e menos violenta, não por motivação religiosa, o mais correto seria por definição filosófica de um conceito humanista e ideal (certamente utópico) da pureza racional.
Mas não posso fingir que não me deleito com os ruídos internéticos que se proliferam acerca do ocorrido em Nova York pelos pipocos que o jovem Luigi Mangione deu em CEO milionário de uma empresa de seguros de saúde que declinavam de forma indecente coberturas de procedimentos de pessoas que pagavam por aquilo, mas não usufruíam quando mais precisavam.

Luigi vs CEO pilantra
Luigi vs CEO pilantra



Por um 2025 mais próspero, com justiça e paz.
Ma’a Salama!

O Melhor de 2019

Tem gente que ainda faz retrospectivas, e olha só, esse ano rende a retro da década, mas, como foi tudo muito rápido, não vou me prolongar num post extenso.
Lembrando a minha regra, só coisas boas, para tentar esquecer as insanidades de lá fora.
Então bora lá:

Esse ano reli muitas coisas, principalmente dois livros que gostei bastante na adolescência do mestre Kurt Vonnegut, as ficções científicas Matadouro 5 e Cama de Gato, dessa vez, em edições novinhas em folha que estão marcando presença em minha prateleira.
Aproveitei para voltar a ler algo do mainstream, A Mulher na Janela, do autor A.J. Finn, um crítico literário que decidiu ser criticado e adaptado para as telonas, vi o trailer hoje de manhã.
Mas o melhor é um nacional, para nossa alegria tupiniquim, com uma história que se desenvolve entre o passado e presente e interlúdios de outras épocas, com grande apelo a amizades, inimizades, suspense, folclore e com uma penca de referências de serpentes.
Eis que Serpentário, do autor Felipe Castilho merece o pódio desse ano.

Ssssssssss

Ssssssssss

De HQs infelizmente acompanhei pouco, queria poder ganhar mais gibis de presente (fica a dica se tu nunca me deu nada).
Mas consegui fazer uma modesta contribuição e eis que o Opticus -Intervenções do autor Tiago P. Zanetic e dos ilustradores Mauricio Leone e Gustavo Lambreta chegou na caixa de correio.
Para não entregar muito, a história se inicia com uma intervenção cirúrgica, em que um médico tenta criar uma de cura definitiva da miopia, mas o processo cria um resultado de super-visão, em que ele passa a enxergar as mínimas falhas das coisas e até microrganismos vivendo nelas.

Para ver melhor...

Para ver melhor…


Nesse ano em que muitas séries resolveram acabar, e não estou falando apenas dos cancelamentos em lote da Netflix, mas de pesos pesados como Game of Thrones, que decepcionou muita gente, e Mr Robot que para meu alívio fechou a história com proeza e coragem por parte da produção.
Derrubar o sistema e se manter são não é para qualquer um, vai deixar saudades Elliot Alderson (e amigos).

/* Tá funcionando assim, não mexer nesse final */

/* Tá funcionando assim, não mexer nesse final */


Mas as melhores séries desse ano foram as minisséries, e as baseadas em fatos reais e/ou históricos.
Acho que em empate são as Chernobyl, Olhos que Condenam (When They See US) e Inacreditável (Unbelievable).
Pequei em não resenhar cada uma em separado, mas considero como obrigatório ver as histórias do desastre radioativo que poderia ter sido muito pior, das condenações absurdas dos cincos do Central Park e da investigação de estupros por duas detetives que honraram não somente o distintivo como também a luta das mulheres no mundo varonil.

"Qual o custo das mentiras?"

“Qual o custo das mentiras?”



Menções honrosas para a primeira temporada da série da terrinha: Our Boys, a segunda de Mind Hunter, a terceira de True Detective e a quinta de Peaky Blinders. A única (será?) de Watchmen, e os curtas da antologia animada Love, Death + Robots e Boneca Russa (Russian Doll).

Nesse ano de polêmicas envolvendo o ótimo Coringa (Joker), o longo porém prato cheio para fãs de Scorcese-Pacino-DeNiro O Irlandês (The Irishman), e a final da saga (seria mesmo?) Star Wars, e de filmes de peso como Era uma Vez em Hollywood (Once Upon a Time in Hollywood) e Vingadores – Ultimato (Avengers End Game) eu devo confessar que o meu predileto foi O Farol (The Lighthouse), em preto e branco, com ótimas atuações de Willem Dafoe e Robert Pattinson, ok, o filme foi um palco aberto para atuações de dois homens isolados se degradarem em meio a uma ilha com elementos de fantasia envolvendo a loucura de ambos, mas foi isso que me fisgou, e esse árabe adora filmes doidos em P&B.
Menções honrosas: MidSommar, O Rei (The King), Vidro (Glass), Vice, Nós (Us), Parasita (Parasite), Na Sombra da Lei (Dragged Across Concrete), Dor e Glória (Dolor y Gloria), Dois Papas (The Two Popes), El Camino.

Trampo leve e normal

Trampo leve e normal

O Rock respira por aparelhos, mas nesse ano o Metal deu espasmos fortes e uma pálpebra ficou entreaberta.
O clássicos do Nu Metal como Korn, Slipkot (Birth of the Cruel ficou no repeat por semanas) lançaram grandes álbuns mais do mesmo, deixando a sua marca quase despercebida dos anos 2010.
Após anos Rammstein lançou o sétimo disco intitulado Rammstein, cuja música e clipe Deutschland ficaram nas paradas por muito tempo. Porém, em termos musicais não tem muita diferença do que já fizeram antes.
Thom Yorke lançou seu terceiro álbum solo, Anima, para arrebatar corações daqueles que são apaixonados por suas músicas quase sem consoantes.
A música Last I Heard (…He Was Circling The Drain) foi outra que ficou no repeat, e que ainda ouço ao menos uma vez na semana.
“I woke up with a feeling I just could not take”
Agora, o grande trabalho musical do ano que merece o primeiro lugar foi o lançamento de Fear Inoculum, da banda Tool.
O hiato de 13 anos compensou, o álbum conquistou também de forma inesperada os tops da Billboard.

Tiozões do Rock (banda Tool)

Tiozões do Rock (banda Tool)


Fecho essa humilde retrospectiva com essa foto de um indivíduo caminhando em sua solitude nas dunas de Socrota, no Iêmen.

Uma leve introspecção

Uma leve introspecção


Nos vemos nos anos 2020!
Ma’a salama!